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ARTIGO -  O Movimento de Natal e a Teologia da história: quando Deus caminha com seu povo

  • pascom9
  • há 11 horas
  • 5 min de leitura

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Ir. Vilma Lúcia de Oliveira, FDC

Instituição: Congregação das Filhas do Amor Divino

Funções: Historiadora, Professora, Coordenadora Geral do Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal, Membro da Comissão de Cultura e Educação da Arquidiocese de Natal, Coordenadora da Subcomissão de Bens Culturais da Igreja

Área temática: Teologia pastoral, história da Igreja no Brasil, espiritualidade encarnada

 

1. Introdução

Há momentos em que a história parece respirar mais fundo. Como se o tempo, esse rio que corre sem cessar, se tornasse lugar de encontro entre o humano e o divino. O Movimento de Natal, nascido no chão fértil do Rio Grande do Norte, é um desses momentos: uma semente lançada na terra da vida, regada por fé, coragem e compromisso. Mais do que uma estratégia evangelizadora, ele se configura como uma leitura encarnada da história, onde a ação de Deus se manifesta no tempo e no povo.

Para compreender essa experiência, é necessário olhar para a história como lugar teológico — como espaço onde Deus se revela e interpela. A Teologia da História, nesse sentido, torna-se uma chave hermenêutica que nos permite ler o Movimento de Natal não apenas como fato social, mas como sinal da presença divina.

 

2. O Movimento de Natal: uma epifania no sertão

O Movimento de Natal não foi apenas uma iniciativa pastoral. Foi uma epifania — uma manifestação da presença de Deus no meio do povo. Sob a liderança de Dom Eugênio Sales e uma equipe de seis padres, articulou rádio-escolas, sindicatos rurais, formação de lideranças e evangelização popular. Era como se o Evangelho ganhasse calos nas mãos e poeira nos pés.

Romano Guardini afirma que “a história é o lugar onde o homem se encontra com Deus, não como espectador, mas como participante” (Guardini, 2021). O Movimento de Natal encarna essa visão: não há distância entre fé e vida, entre céu e chão. Deus caminha com seu povo, e seu passo é o da solidariedade.

 

3. A Teologia da História: o tempo como sacramento

Para que a história seja compreendida como lugar de revelação, é preciso vê-la com olhos teológicos. Hans Urs von Balthasar, com sua teologia dramática, nos lembra que “a história é o palco onde se desenrola o drama da salvação, e cada pessoa é chamada a desempenhar seu papel” (Balthasar, 2012). No Movimento de Natal, cada rádio-escola era um ato desse drama, cada formação de líderes, uma cena de redenção.

Karl Barth, por sua vez, insiste que “Deus fala na história, mas não é prisioneiro dela” (Barth, 2017). A revelação é sempre iniciativa divina, mas exige resposta humana. O Movimento de Natal foi essa resposta: uma Igreja que escuta o grito do povo e responde com presença, formação e profecia.

 

4. A virada historiográfica e a pastoral encarnada

A virada historiográfica dos Annales, com sua valorização da história das mentalidades e do cotidiano, oferece uma lente fecunda para compreender o Movimento de Natal. A história deixa de ser apenas narrativa de grandes eventos e passa a incluir os pequenos gestos, os silêncios, as resistências.

Teresa Forcades, ao refletir sobre a corporeidade e a espiritualidade encarnada, afirma que “o corpo é lugar de revelação e resistência, onde a fé se torna política e a teologia se faz carne” (Forcades, 2011). A pastoral encarnada do Movimento de Natal é expressão dessa corporeidade teológica: Deus age nas estruturas, nas práticas, nos ritmos da vida. A história, assim compreendida, torna-se lugar de discernimento espiritual e ação transformadora.

 

5. Protagonismo leigo, feminino e popular: sinodalidade em movimento

O Movimento de Natal foi marcado pelo protagonismo dos leigos e das mulheres consagradas. Elas não estavam à margem, mas no centro da missão. Henri de Lubac, ao afirmar que “a graça não anula a natureza, mas a eleva” (de Lubac, 2002), nos lembra que a Igreja é feita para o mundo. As mulheres consagradas do Movimento de Natal são testemunhas dessa elevação: presença silenciosa, mas transformadora.

Mas há um outro protagonismo, muitas vezes esquecido: o do povo simples. Agricultores que aprenderam a ler com cartilhas radiofônicas, mães que alfabetizaram os filhos, lideranças comunitárias que se tornaram catequistas e agentes de transformação. Joan Chittister afirma que “a fé dos pequenos é o fermento que transforma o mundo — não por força, mas por fidelidade” (Chittister, 2020). No Movimento de Natal, Deus encontrou muitos desses homens e mulheres no chão do sertão, na roça, nas periferias — e ali fez morada.

A sinodalidade, nesse contexto, não é apenas método, mas mística: é o modo como Deus se faz caminho entre nós, revelando-se nos passos dos pequenos, nos gestos dos humildes, na fé dos esquecidos.

 

6. Conclusão: A história como lugar de graça

Ao longo deste artigo, vimos que o Movimento de Natal é mais que memória pastoral: é uma chave teológica para compreender a ação de Deus no tempo. Ele nos ensina que a história não é um cenário neutro, mas um campo de revelação, onde o divino se entrelaça com o humano.

A Teologia da História, iluminada por Guardini, Balthasar, Barth, Forcades, Chittister e de Lubac, nos ajuda a perceber que o tempo pode ser sacramento, que o cotidiano pode ser teofania, e que o povo pode ser teólogo. O protagonismo dos leigos, das mulheres consagradas e do povo simples revela uma Igreja sinodal, encarnada, profética — uma Igreja que não apenas fala de Deus, mas o revela em sua caminhada.

Assim, o Movimento de Natal permanece como sinal e convite: sinal de que Deus caminha com seu povo, e convite para que continuemos a ler a história com olhos de fé, pés no chão e coração aberto à graça — porque é no cotidiano dos pequenos que o Reino costuma nascer.

 

7. Bibliografia

• Barth, Karl. Dogmática Eclesiástica: Uma seleção com introdução de Helmut Gollwitzer. São Paulo: Fonte Editorial, 2017.

• Balthasar, Hans Urs von. Teodramática: Teoria dramática teológica, vol. I. São Paulo: É Realizações, 2012.

• Chittister, Joan. A hora é agora: por uma espiritualidade corajosa. São Paulo: Vozes, 2020.

• Chittister, Joan. Entre a escuridão e a luz do dia: abraçando as contradições da vida. São Paulo: Vozes, 2019.

• de Lubac, Henri. Catolicismo: os aspectos sociais do dogma. São Paulo: Loyola, 2002.

• Forcades, Teresa. A teologia feminista na história. Barcelona: Fragmenta Editorial, 2011.

• Guardini, Romano. O fim dos tempos modernos. São Paulo: Ecclesiae, 2021.

• Guardini, Romano. O Senhor: reflexões sobre a pessoa e a vida de Jesus Cristo. São Paulo: Cultor de Livros, 2021.

• Le Goff, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

• Bloch, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

• Sales, Dom Eugênio. Evangelização e Promoção Humana: O Movimento de Natal. Natal: Arquidiocese de Natal, 1965.

• CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019–2023. Brasília: Edições CNBB, 2019.

 

 
 
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