top of page

Lectio divina - Encontro de Leitura Orante da Palavra

Por Pe. Paulo Henrique da Silva

Diretor de estudos do Seminário de São Pedro


Dentro do espírito do Advento, nessa semana que começa a preparação mais próxima do Natal do Senhora, reflitamos, no modelo da Lectio divina, a figura do Batista, a partir do texto de São Lucas que apresenta o relato do seu nascimento:

Introdução – relato do nascimento de João, o Precursor, também chamado de “Batista”. Somente São Lucas apresenta o nascimento do Precursor, assim como, relata o anúncio de sua concepção (cf. Lc 1,5-26). O nosso texto faz parte do chamado “Evangelho da infância” (Lc 1,5―2,52): “dois longos capítulos, contribuição própria de Lucas, que pôde contar com informações orais ou com documentação já elaborada. Ele compõe em quadros paralelos: duas anunciações angélicas, dois nascimentos, dois hinos de ação de graças, a mãe estéril e a mãe virgem; o encontro das duas mães, que é encontro pré-natal de João e Jesus. Estas as duas personagens principais: João precede no tempo, Jesus na dignidade. A composição paralela faz ressaltar a categoria excepcional de Maria e Jesus” (LUIS ALONSO SCHÖKEL. Bíblia do peregrino, p. 2450).

 

1. A PALAVRA LIDA

a) O tempo de gravidez. Alusão ao fato do anúncio da concepção de João, por parte de Zacarias e Isabel (Lc 1,5: “No tempo de Herodes”; Lc 1,26: “No sexto mês...”, começo do relato da anunciação a Maria; Lc 1,56: “Maria ficou com ela [Isabel] três meses, e depois voltou para casa”);

b) Os vizinhos se alegraram com ela. O anúncio já tinha profetizado: Lc 1,14: “Terás alegria e regozijo, e muitos se alegrarão com seu nascimento”. Os capítulos 1 e 2 estão impregnados de uma atmosfera de alegria: 1,28.46.58; 2,10. Cf. 10,17.20s; 13,17; 15,7.32; 19,6.37; 24,41.52; At 2,46; Fl 1,4);

c) Ele vai chamar-se João. Conforme o anjo tinha anunciado. “João” quer dizer: Javé é favorável;

d) E a boca de Zacarias se abriu. Por causa do ceticismo de Zacarias o anjo lhe disse: “Eis que ficarás mudo e sem poder falar até o dia que isso acontecer...” (Lc 1,20). Pode-se ver a diferença entre a pergunta de Zacarias e a de Maria;

e) O que vem a ser esse menino? “É a versão teológica de nossa frase ‘uma criança que promete’, porém é Deus quem promete”. A mão de Deus: Is 41,20; Ez 1,3; Sl 80,18. A resposta sobre o futuro papel de João será respondida inicialmente em Lc 1,76-79 e, depois, de forma mais completa em Lc 3,1-20 (cf. também 7,17-35);

f) O menino crescia e se fortalecia no espírito. Como sansão (Jz 13,24-250; como o menino Samuel (1Sm 2,21). Também dirá de Jesus a mesma coisa: Lc 2,40.52)

g) Mora no deserto. Como Elias (1Rs 17); no seu caso, esse retiro significa afastar-se do templo e do culto. A sua atividade fica pendente até o capítulo 3. Lucas tira João da cena e prepara seus leitores para um ato posterior de seu drama, quando narra a profecia de João para Israel.

 

2. A PALAVRA MEDITADA

a) Deus age na vida seguindo o tempo. Ele não age fora do tempo, a não ser em sua vida intradivina. Mas, quando cria o homem e se revela, o que conta agora é o que faz para nós, ou em nós. Ou melhor: em relação a nós, Deus vive agindo na nossa vida, em nossa história. Cabe a nós o reconhecimento disso. Pode-se dizer que desde a primeira relação de Deus com o homem, possibilitada dentro do universo do mundo criado, Deus “segue” ou, podemos dizer, “se submete”? à história de cada um. Os textos bíblicos refletem bem essa datação, preocupação com a geografia, topografia...;

b) O significado da relação Deus e o homem, sentido da fé. Alegria é a palavra que manifesta melhor o significado ou o sentido, o clima da relação de Deus com o homem. Não existe outro sentimento que se produza no sentido da fé. “A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria” (PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii gaudium, 1);

c) A figura de João Batista. Profeta de Deus, não pertence ao período da promessa, mas inaugura o período do cumprimento, cuja figura central é Jesus. Quando João completa sua preparação (Lc 1,80) e se torna um pregador itinerante que prepara o caminho de Jesus, ele o faz cumprindo a profecia de Deus: a de Gabriel (Lc 1,15-17), a de seu pai Zacarias (Lc 1,76-79) e a de Isaias (Is 40,3-5). Ao cumprir as promessas, Deus direciona o ministério de João (e também o de Jesus). Como também será no caso de Jesus, o ministério de João se dirige a todos (Lc 3,7-14), João não é Jesus, o Messias (Lc 3, 15-17). Seu batismo, que é preparatório para o caminho de Jesus, deve ser complementado pelo Caminho de Jesus (At 18,25-26) e pela fé em Jesus e pelo dom do Espírito (At 19,3-5). João sofrerá uma morte violenta (3,19-20; 9,7-9). Como João foi morto Mateus e Marcos nos apresenta: Mt 14,1-12; Mc 6,14-29);

d) Ainda sobre João: ele é apresentado, por Lucas, como um modelo para as igrejas. Elas também preparam para o Messias Jesus e não são o Messias: Lc 3,16. Em Jo 1,19-34 vemos o testemunho de João. Em Jo 3,29-30: “Quem tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que está presente e o ouve, é tomado de alegria à voz do esposo. Essa é a minha alegria e ela é completa! É necessário que ele cresça e eu diminua”

 

3. A PALAVRA VIVIDA

a) Somos chamados a reconhecer a nossa vida como “História de Deus na nossa história”. Não há como ter fé, ser religioso sem essa fundamental característica. Quando os Evangelhos apresentam os dados históricos, notícias, lugares referentes a João, o Batista, eles têm, antes, uma história de ação divina, uma história de personagens que só se compreendem como parceiros de Deus: sábios, profetas, reis, juízes, patriarcas... todos em relação com Deus. A nossa vida também é assim: ter fé, ou assumir uma missão, reconhecer a vocação consiste em viver em Deus, viver com Deus e viver para Deus;

b) Viver assim, em Deus, com Deus e para Deus, é fonte de alegria. É uma alegria sem precedentes. Mas, vivemos essa alegria? Atitudes que precisamos vencer para que a alegria esteja presente em nossa vida: pecado, tristeza, vazio interior, isolamento. Ou como disse o filosofo Nietzsche, desdenhando dos cristãos: “Canções melhores eles teriam de me cantar, para que eu aprendesse a acreditar em seu Redentor: os discípulos deste teriam de me parecer mais redimidos” (NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra, II. Dos sacerdotes, p. 88. Companhia das Letras). Qual é a nossa face como “face de redimidos”, mas tristes, melancólicos, frustrados? Somos cristãos que vivem redimidos pela Páscoa do Senhor. Mas, como ressaltou Papa Francisco: “Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa” (PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii gaudium, 6). “Nos Atos dos Apóstolos, para expressar o ideal da experiência cristã, fala-se da agallíasis (At 2,26.46; 16,34): a alegria escatológica, que, principalmente a partir do culto, difundia-se sobre os rostos e as coisas da comunidade. Ali aparecia a “face dos redimidos” que Nietzsche via pouco nos cristãos” (ANDRÉS TORRES QUEIRUGA. Creio em Deus Pai. Paulinas, 1993, p. 187). A nossa alegria vem de sermos “amigos do Esposo”;

c) O exemplo de João Batista. Embora João não seja discípulo de Cristo, e sim o Precursor, ele pode ser apresentado como modelo de vida cristã. Antes do Concílio Vaticano II, de fato, pela tradição da Igreja antiga, se dava ênfase na figura de João, atribuindo-lhe um autêntico sustento da história da salvação, ás vezes até mais que a São José. Mas, tudo o que se dirá dele, como aspectos da vida de fé, de seguimento a Jesus, pode-se ver na figura do pai nutrício de Jesus:

- Também nós somos chamados a “preparar” o caminho de Jesus. Claro, fazendo atenção às palavras do Mestre: “Digo-vos que dentre os nascidos de mulher, não há maior do que João; mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele” (Lc 7,28). Por quê? Porque somos discípulos do Filho de Deus feito homem. Mas, como disse Santo Agostinho: “João era a voz, Cristo a Palavra”. Discípulos da Palavra, somos chamados a viver no caminho de Jesus Cristo, e ser como João, “voz de Cristo-Palavra”. Daí a necessidade de conhecermos Jesus Cristo. Volto a lembrar das palavras iluminadoras de papa Bento XVI, repetidas por Papa Francisco: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (BENTO XVI. Carta Encíclica Deus caritas est, n. 1). Está claro que aos sermos “precursores”, devemos cuidar para não cairmos na “autorreferencialidade”, tão rechaçada pelo Papa Francisco. O centro é Jesus Cristo, não nós. É preciso ter a coragem de João: “Eu não sou o Messias”. Eu não sou a Palavra. “Eu sou a voz que grita no deserto”. Essa é a atitude de um verdadeiro discípulo de Jesus, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, como apontou João para seus discípulos (cf. Jo 1,29);

- “É preciso que ele cresça e eu diminua”. Frase que pode ser tomada como programa de vida. Ela lembra uma frase de São Paulo: “É necessário que Ele reine” (1Cor 15,25). Cristo reina porque cresce em nós. Somos convidados para deixar que Ele cresça em nós. O diminuir de João não significa humilhação ou desprezo. Lembro o elogio de Jesus sobre João, e o seu testemunho de vida (martírio).  Cristo em nós, a vida no Espírito (cf. Rm 8), a vida escondida com Cristo em Deus (cf. Cl 3,3), a vida de comunidade (cf. Ef 1,13s; Cl 1,18; At 20,28).

 

bottom of page