Diác. Paulo Felizola
Paróquia de Nossa Senhora do Ó - Nísia Floresta
Frei Betto[i], em reflexão a respeito da falta de paradigmas que fomentem utopias[ii], sugere que, as novas gerações passaram a viver sem esperanças e, dominadas pelas redes virtuais, foram sendo destituídas de cidadania e incentivadas ao consumismo, ao narcisismo, ao individualismo, ao empreendedorismo, ao mesmo tempo em que foram induzidas a acreditar que a culpa pela pobreza é dos indivíduos e não do sistema[iii]. Embora não possamos negar que tenha havido ações destinadas a amenizar as consequências dessa perversidade, mas o combate às causas estruturais tem se mostrado ineficaz ou existente.
Essa inexistência de combate às causas estruturais lembra a saia justa, para não dizer o desespero, a que o filho do amigo Thalles o submeteu. O Júnior, que deveria ter uns 10 anos de idade e já estava viciado em “vídeo games”,[iv]por sinal incentivado pelos pais que acreditavam serem os jogos estimulantes ao desenvolvimento cognitivo do filho e de seus reflexos, perguntou ao pai, após o sucesso obtido em um dos jogos: Pai, porque, para vencer, é preciso matar? Disse-me o amigo que, em resposta, argumentou apenas que aquilo era só no jogo. Na verdade, o amigo Thalles havia ficado, totalmente, desorientado.
Mas, o que esse fato tem a ver com as preocupações de Frei Betto? À primeira vista, não parecer nada relevante. No entanto, aí está tudo o que precisamos para entendermos o que nos tem levado a viver uma vida sem esperanças, o que nos faz aceitar que somos pobres por culpa nossa, aí está uma do processo de formação que vai muito além da escola formal, por atender aos interesses de uma ideologia: O neoliberalismo.
Quando o Papa Francisco nos alerta que estamos em uma mudança de época é porque passamos a viver sob o controle de um novo império global: o Império do capitalismo financeiro, que se caracteriza por ser o eixo econômico que congrega, os outros poderes. Ou seja, o Império do capitalismo financeiro é formado por uma infraestrutura composta pelo capital financeiro dominante e determinante de toda a superestrutura jurídico-política e ideológica. Tudo deve ser reduzido, através de uma rede financeira internacional, à gerência de um conteúdo econômico, que conhecemos como o mercado global. Portanto, nesse sentido, o império é totalitário na medida em que a democracia serve apenas para garantir a liberdade do mercado, a negação da política e para submeter tudo à lei do lucro. Não é exagero, portanto, dizermos que para o Império do capitalismo financeiro Mamon é Deus[v].
O neoliberalismo, como corrente política dominante no âmbito do império, se destaca, principalmente a partir dos anos de 1970, tendo como base a hipótese de que só no extremo do individualismo é que se realiza a vocação humana. Por essa hipótese os instintos gregários e a solidariedade humana devem ser deixados para trás para que o ser humano possa assumir sua racionalidade profundamente individualista, na linha do que afirmava Adam Smith[vi], para quem o comportamento do ser humano é dividido em duas áreas: de um lado, a moral, na qual a utilidade dos indivíduos e da sociedade é obtida através do exercício da simpatia e, de outro lado, a econômica na qual, a mesma, utilidade é obtida através do exercício do egoísmo, sendo a competição o fator equilibrador do conflito entre a simpatia e o egoísmo. Portanto somente com uma concorrência livre em todas as esferas é que se poderia chegar à plena liberdade. Logo, qualquer interferência no processo concorrencial, torna-se um obstáculo na realização dos interesses individuais. O Estado, assim, deve ser reduzido à sua mínima expressão.
Na realidade o que Smith chama de egoísmo tem o mesmo sentido da avareza de natureza física, de que trata John Locke[vii], ou seja, a tendência natural para a acumulação da riqueza, mas que só seria possível através da competição. O egoísmo seria, assim, uma virtude fundamental para a satisfação do indivíduo, implicando, por outro lado, que no processo competitivo que permite a acumulação da riqueza não há a necessidade de nos amarmos: o egoísmo é virtude e o amor um pecado.
A concorrência, nesse sentido, torna-se a negação de todo e qualquer vínculo com o outro, pois o outro será sempre um competidor e, como competidor será sempre uma ameaça e não uma oportunidade de construção conjunta. Na competição o único interesse seria, portanto, a satisfação individual. Por isso, a competição promove, sempre, uma tensão, pois os interesses em disputa só serão possíveis com o triunfo de um e a aniquilação do outro. Perder significa morrer. Na livre competição do mercado só há lugar para os ganhadores, só há lugar para os que conseguem matar o concorrente, só há lugar para os que são capazes de desprezar a vida dos mais fracos. No mercado competitivo o Bom Samaritano ou o convertido Zaqueu são dois estúpidos primitivos, o herói será, sempre, o rico que Jesus o mandou vender tudo que tinha e depois voltasse para segui-lo.
Finalizando sua reflexão, Frei Betto pergunta e depois conclui nos seguintes termos:
“Como enfrentar tamanho eclipse da utopia que mobilizava multidões de jovens [...]? O que temos a apresentar de melhor além de promessas?
Hoje, é incomensurável o número de jovens asfixiados pelo niilismo. Ignoram a ética, são indiferentes à religião, desprezam a política, têm ideias tão desalinhadas quanto os fios de seus cabelos. Sonham apenas em ter um bom emprego e uma vida confortável – um lugar ao sol nesse sistema cada vez mais afunilado e excludente”.
Às perguntas do Frei, o amigo Thalles e seu filho, respondem: deixando de aprender a matar.
O Império do capitalismo financeiro para se consolidar desenvolveu uma rede de difusão de seus ideais que se estende desde os ingênuos joguinho para a distração das crianças, passando pelos mais variados gêneros cinematográficos, nos quais os mocinhos vencedores são sempre aqueles que destroem a todos. Na construção dessa rede, tem papel fundamental os centros difusores das ideias individualista destinados aos jovens, como os centros para o desenvolvimento do empreendedorismo, onde a doutrina da meritocracia, a desqualificação da política e a depreciação do Estado reinam absolutas. A escola deixou de ser um lugar de formação de cidadãos e cidadãs para ser um lugar de treinamentos, uma escola de artífices apenas, onde todos devem ser conformados aos interesses do Império.
Assim sendo, o deixar de aprender a matar é dizer não ao Império, valorizando a pessoa a partir da sua capacidade de serviço e solidariedade, aprendendo a medir a grandeza da vida pela capacidade de servir e ajudar os outros a viver de forma mais humana, como nos convida o Papa Francisco a darmos as mãos para construirmos e vivermos um grande Pacto pela Educação que, colocando o ser humano no centro do processo, possa nos devolver todas as esperanças de uma vida mais humanizada. Assim como o Império se consolida por um processo educacional que difunde o egoísmo e a morte, a sua desconstrução, também, passa por outro processo de educação fundado na solidariedade e na vida, ou seja, um processo de educação que mude consciências, difundindo que para vencer é preciso amar.
[i] Frei dominicano e escritor.
[ii] Frei Betto. “Da Utopia à Distopia”. Disponível em www.ihu.unisinos.br/categorias/645629-da-utopia-a-distopia-artigo-de-frei-betto
[iii] Seria como dizermos: você é pobre porque é pobre e nada podemos fazer.
[iv] O Atari do Júnior era sempre o mais moderno, com os jogos sempre atualizados.
[v] Não é por acaso que, ao insistir em sermos uma Igreja em saída, o Papa propõe uma nova postura pastoral e missionária de uma Igreja em saída, que diga não à economia que mata, que exclui e descarta, enfim, uma Igreja que se oponha aos processos que destrói a criação.
[vi] Filósofo e economista escocês.
[vii] Filósofo inglês conhecido como o "pai do liberalismo.