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ARTIGO - “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28)

Dom João Santos Cardoso

Arcebispo de Natal

 

O discurso de Paulo no Areópago de Atenas (Atos 17,15.22-18,1) é um exemplo notável do diálogo entre a fé cristã e a racionalidade filosófica. Ao percorrer a cidade de Atenas, impressionado pela religiosidade dos atenienses, que inclusive haviam erigido um altar ao “Deus desconhecido”, Paulo aproveita essa abertura para inculturar o Evangelho, proclamando o Deus verdadeiro que não habita em templos feitos por mãos humanas e que deseja ser conhecido por todos.


Em seu discurso, Paulo pronuncia uma  frase de grande profundidade: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). Essa expressão ressoa como um eco da busca filosófica dos gregos pelo princípio (arché), a realidade última, o fundamento, a substância primária que sustenta todas as coisas. Desde os pré-socráticos, como Thales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes, essa busca foi central: descobrir a substância na qual tudo subsiste. Esses primeiros filósofos naturalistas identificaram o princípio em elementos materiais – água, ar, fogo – ou em conceitos abstratos, como o “indeterminado” de Anaximandro, ou a harmonia de contrários, como em Heráclito. Mais tarde, Platão localizaria esse princípio fora do mundo sensível, nas ideias perfeitas, as formas transcendentais que moldam toda a realidade.


Paulo, atento a esse pano de fundo filosófico, faz algo notável: retoma essa tradição de busca pela origem e fundamento, mas a eleva a uma dimensão pessoal e relacional. Ele afirma que esse princípio não é uma força cega ou um conceito abstrato. Não se trata de um elemento natural, nem de uma forma ideal que paira acima da matéria, mas de um Deus vivo, pessoal e relacional,$ que nos envolve e nos sustenta em nossa existência concreta. Esse Deus, “no qual vivemos, nos movemos e existimos”, não é apenas o fundamento impessoal de tudo, mas o Criador que deseja um relacionamento de amor com cada pessoa.


A riqueza da mensagem de Paulo está em sua universalidade: tudo e todos existem porque Deus sustenta a vida. Esse Deus não se reduz à religião mitológica, como a elaborada mitologia grega, com seus deuses esculpidos em ouro, prata ou pedra, nem se deixa aprisionar pelos esquemas filosóficos, por mais elevados que sejam. Ele transcende qualquer representação ou teoria, mas está, ao mesmo tempo, próximo de cada pessoa. Somos “da raça do próprio Deus” (cf. At 17, 28), como cita Paulo, mencionando poetas gregos, e indicando que nosso ser e nosso movimento têm origem e sentido n’Ele.


No entanto, Paulo não obtém grandes resultados no Areópago. Seu discurso, embora refinado e adaptado ao contexto filosófico de Atenas, encontra pouco acolhimento. Alguns zombam ao ouvir falar de ressurreição; outros apenas adiam o interesse para ouvi-lo em “outra ocasião”. Apenas alguns – como Dionísio, o areopagita, e Dâmaris – se unem a ele e abraçam a fé. Por que essa mensagem tão densa e bela não encontrou eco naquele ambiente intelectual?


Isso nos ensina que a verdade de Cristo não se reduz a um discurso teórico, por mais eloquente ou inteligente que seja. Paulo, mesmo dominando as categorias filosóficas, percebe que a fé cristã vai além da especulação racional: ela é um encontro vivo com uma pessoa, o Cristo Ressuscitado. Por isso, a proclamação do Evangelho não depende apenas de argumentos sólidos, mas do testemunho de uma vida transformada pelo encontro com Cristo e de um coração que arde de amor por Aquele que nos amou primeiro.


Assim, “nele vivemos, nos movemos e existimos” constitui um convite permanente para estabelecermos uma relação pessoal com Deus, que nos envolve e nos chama a viver em comunhão com Ele. Essa experiência não é meramente teórica, mas existencial. Nossa vida só encontra sentido pleno quando reconhecemos, não um princípio abstrato ou natural, mas quando entramos em relação com o Deus vivo e verdadeiro, revelado em Jesus Cristo, que deseja conduzir cada um ao arrependimento, ao amor e à vida nova. Essa mensagem transcende qualquer teoria e se faz verdade no encontro pessoal com o Senhor. Nele respiramos, nos movemos, existimos e somos: eis o princípio e o fim de nossa vida.

 
 
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