Diác. Paulo Felizola
Paróquia de Nossa Senhora do Ó – Nísia Floresta
O ano era 2019 e a Campanha da Fraternidade tinha como tema “Fraternidade e Políticas Públicas” e como lema “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27). Todos nós do antigo Vicariato Sul, tínhamos sido convidados para um momento de reflexão a respeito do tema da Campanha. Todo fomos para a cidade de Santa Cruz. A partir de um determinado momento quando o assessor começou a falar sobre a dívida pública do Brasil, um dos padres que estavam presentes perguntou ao assessor o que era dívida pública. O constrangimento foi imediato. Nosso irmão e assessor, apesar da tranquilidade demonstrada, não conseguindo responder, corajosamente, teve a humildade de confessar que não sabia o que era. A saia justa já estava vestida.
Conto esse acontecimento, não para desmerecer quem quer que seja, mas para lembrar que o agente de pastoral deve estar devidamente preparado para cumprir, com a confiança devida, a sua missão de bem informar, revelando em suas ações e testemunho a relação estreita entre a fé e a vida.
Pois bem, chegou dezembro e com ele, como é de hábito, chegam, também, as especulações de toda ordem sobre o que vai acontecer no novo ano. Muitos cenários são montados, dos mais otimistas ao mais pessimista, alguns, cientificamente fundamentados, mas outros que revelam, somente, rasas conjecturas. No Brasil, esse momento de especulações vem sendo marcado, fortemente, pelo debate acerca da dívida pública brasileira que, para uns, é algo que nos está empurrando para a caverna do dragão da inflação e da inviabilidade econômica, enquanto, para outros, o crescimento da dívida pública é apenas um indicador de que voltamos a crescer.
Nesse contexto, a desinformação tem sido marcante, tendo a mídia como o grande agente propagador, principalmente quando insiste em nos fazer acreditar que o Estado, o setor público, deve comportar-se de modo responsável, como fazem as famílias equilibradas: gastando apenas o que ganham. Ou seja, os agentes da desinformação procuram nos convencer, portanto, que o Estado só deve gastar o que arrecada. Mas não é assim, nunca foi e nunca será, porque o Estado opera, ou tem comportamento operacional, totalmente, diferentre das famílias e das empresas.
As famílias e o as empresas, quando em tempo de crise ou quando percebem a aproximação de tal situação, normalmente, procuram restringir os seus gastos, fazendo uma poupança que lhes permita atravessar a turbulência da crise. Enquanto, por outro lado, o Estado age de maneira diferente. Em tempos de dificuldades, faz uso da prerrogativa de poder fazer gastos autônomos, fazer gastos sem a devida cobertura de receita. Ou seja, o Estado diferente das famílias e das empresas pode gastar, fazer despesas, independentemente, do nível de receita prévia.
Seguindo esse raciocínio, podemos continuar mostrando o quanto são diferentes ambos os comportamentos das famílias e das empresas e do estado. Enquanto as famílias e as empresas não definem o quanto vão ganhar, o Estado pode definir o quanto vai arrecadar através do sistema tributário e como vai redistribuir a carga tributária (quem vai pagar mais e quem vai pagar menos) ao mesmo tempo em que, utilizando essa receita, poderá implementar políticas econômicas (ou políticas públicas em geral) que visem aumentar o nível do emprego e da renda, consequentemente, aumentando o nível de consumo. É nesse sentido que, em tempos de crise, o Estado pode gastar mais do que tem, com a finalidade de manter o nível da demanda das famílias e das empresas, principalmente. Em um bom economês diríamos que, em tempos de crise, o Estado gasta o que não tem, para manter o nível da demanda agregada e, portanto, usa o endividamento como estratégia anticíclica[i].
Para manter o nível da demanda agregada via endividamento, o Estado pode recorrer ao endividamento interno, que o faz em moeda nacional, vendendo títulos da dívida pública[ii] ou ao endividamento externo, em moeda conversível, em dólar norte americano, se endividando com credores no exterior. Além disso, diferentemente das famílias e das empresas, o Estado, quando se endivida internamente, faz valer a sua soberania determinando a taxa de juros que ele quer pagar e o prazo no qual pretende amortizar a dívida.
Feitas essas considerações já podemos dizer que a Dívida Pública é um estoque de endividamento construído ao longo do tempo e definido pela diferença entre o que o Estado gasta no ano e o que ele arrecada servindo como instrumento de políticas econômicas e sociais.
Ao longo do processo de endividamento do Estado, alguns problemas podem surgir na interação entre os agentes econômicos. Dentre esses problemas o mais sério diz respeito à transferência de renda, feita pelos bancos, para os mais ricos através dos juros recebidos e dos spreade cobrados das famílias e das empresas[iii].
Embora a dívida pública possa ser, eficazmente, utilizada como instrumento de política econômica para promover a melhoria na qualidade de vida das pessoas, esse endividamento, também, possui limites, dentre os quais podemos citar, em primeiro lugar, as expectativas dos agentes investidores. Estes podem avaliar que a dívida pública está muito alta e não mais aceitarem esses ativos, trocando-os por outro mais atrativo como, por exemplo, o dólar. Outro limite ao endividamento é a expansão da base monetária[iv]. Com uma base monetária maior, se a economia estiver sem capacidade ociosa, a oferta será insuficiente para atender à demanda, o que pressionará, para cima, o nível geral de preço, a inflação[v].
Como medida para avaliação da magnitude da dívida pública, é usada a relação dívida/PIB e sua tendência, que muitas vezes, a autoridade monetária, o Banco Central, a utiliza na definição da política monetária, elevando ou reduzindo a taxa básica de juros. Atualmente essa relação está em 76,6%, ou seja, a dívida pública brasileira corresponde a 76,6% do PIB, convivendo com uma taxa de juros básica de 11,25 % ao ano, com viés de alta, que por sua vez tende a conter o consumo das famílias e o investimento das empresas, mesmo diante da existência de capacidade ociosa[vi].
Assim sendo, podemos perceber quanto esforço é feito para desinformar o cidadão e a cidadã comuns de nossas comunidades, de forma a empobrecê-los, mas não nos custa nada ficarmos alertas na defesa da vida, proclamando a verdade na certeza de que, assim procedendo, seremos todos libertados pelo direita e pela justiça.
[i] O gasto deficitário do estado vira receita de alguém, ou seja, o gasto do Estado cria moeda.
[ii] Quando o Estado negocia títulos da dívida pública ele cria ou amplia a dívida mobiliária.
[iii] 99% dos títulos da dívida pública emitidos são adquiridos pelos bancos, portanto os juros pagos pelas famílias, empresas e pelo estado, ao serem transformados em lucros dos bancos são distribuídos em forma de dividendos aos acionistas, pelos quais não são cobrados impostos.
[iv] A base monetária é o total de dinheiro em circulação na economia mais as reservas bancárias mantidas nos bancos comerciais no Banco Central.
[v] No Brasil de hoje não estamos sujeitos a nenhum dos dois limites apresentados, pois os leilões dos títulos da dívida pública estão sendo realizados regularmente e ainda temos folga na capacidade ociosa, como comprovado pelo persistente crescimento do PIB, pelo aumento do emprego formal e pela redução da situação de pobreza do povo.
[vi] No Japão a relação dívida/PIB é de 260% e a taxa de juros básica de 0,25% ao ano. Na Itália a relação é de 150% e a taxa de juros 3,4%. Na China a relação é de 116% e a taxa de juros 3,10%. Nos Estados Unidos a relação está ao nível de 99% para uma taxa de juros de 4,75%. Na França a relação é de 110,6% e a taxa de juros 3,25%. Na União Europeia a relação é de 88,6% para uma taxa de juros de 3,25%.