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ARTIGO - A negação da racionalidade

Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal

 

Em nossos dias, tivemos a oportunidade de ouvir falar sobre o fenômeno de pessoas que adotaram “bebês reborn”. O comportamento gerou perplexidade, comentários e foi alvo de muitas apreciações espantosas. Confesso que, de imediato, fiz ponderações que foram repensadas com o tempo. Aos poucos, fui aprofundando a questão e discernindo que este “fato social” nos diz sobre algo mais complexo e profundamente questionador acerca da condição humana no contemporâneo. O que temos que ter presente, antes de tudo, é uma crise da racionalidade, ou como autores do pós-guerra já descreviam, estamos na Era do “eclipse da razão” (cf. M. Horkheimer). Longe de ter sido superada, mesmo com todos os sinais desconcertantes daquele período, o que vemos é um aprimoramento da “razão instrumental”, com sua negação do primado da antropologia integral e, com essa, a da dignidade universal da pessoa humana, desde à sua concepção até o seu fim natural.

 

Os sinais dos tempos estão postos aos nossos olhos. Basta parar para pensar, refletir e criticar. Ainda no pós-guerra, a filósofa Hannah Arendt já lucidamente analisava que “a incapacidade da razão para mobilizar a vontade deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional, em suma deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual ‘a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões’; isto é, levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da alma” (cf. A Vida do Espírito, pág. 88). A descrição das consequências deste abandono da razão ao equilíbrio pessoal e social das relações é algo a ser levado a sério em nossas rodas de conversações sobre a cultura pós-moderna. O que está em questão é de fato a identidade do humano; sua engenharia subjetiva e objetiva; sua verdade e a sua história. Na negação da capacidade de pensar está a potencialização do cancelamento do Outro. Assim como no pós-guerra, estamos a necessitar de um “novo humanismo”, como profeticamente nos advertiu o Papa Francisco, que nos torne capazes de testemunhar a fraternidade e a empatia profundamente humanizadoras.

 

Essa novidade é a via evangélica e antropológica para enfrentamos a crise de humanidade pela qual passa a cultura pós-secular. No capítulo segundo da Fratelli Tutti, o Pontífice ao fazer uma interpretação da parábola do Bom Samaritano (cf. Cap. II), nos ensina que o caminho e o modo de agir à superação destes sinais de um mundo fechado e marcado pela negação da reflexão e do discernimento é a “compaixão”. O de sentir a situação de um coração transpassado pelo que gera miséria pessoal e social. No anseio do racionalismo moderno em negar o valor da religião, especialmente o do cristianismo, como podemos constatar nos mestres da suspeita - Nietzsche, Marx e Freud -, o regime pós-humanista tem nos levado ao outro extremo que é o de renegar, pelas ferramentas da nova revolução levada a termo pela “inteligência artificial”, o fim do ser humano como medida de todas as coisas, numa ecologia integral e, inclusive, na atenção que urge ser dada ao cuidado da nossa casa comum.

 

Essa negação da racionalidade tem um elemento que pode servir de base à sua contemplação e hermenêutica, que é o “eu emotivista” (cf. A. MacIntyre. Depois da Virtude, cap. IV). Para o autor, existem episódios centrais, que “possibilitaram o surgimento deste ‘eu emotivista’, com suas formas características de relacionamento e modos de expressão - da história da filosofia, e que só à luz dessa história poderemos compreender como as idiossincrasias do discurso moral contemporâneo, quotidiano, vieram a existir e, por conseguinte, como o eu emotivista conseguiu encontrar um meio de expressão” (cf. Pág. 73). A desconstrução que entrega essa solidão mais estético que ético tem sua apresentação epistêmica em S. Kierkegaard (cf. Pág. 78). O paradigma da expressão estética é o namorado romântico que está imerso em sua própria paixão. Ao contrário, o ético é o casamento, um estado de comprometimento e obrigação duradoura, no qual o presente foi destinado pelo passado a ser o futuro. Cada um dos dois estilos de vida é formado por conceitos diferentes, por atitudes incompatíveis, por premissas rivais (cf. Idem. Pág. 79). a construção filosófica deste autor tem a intenção de nos levar à luz da necessária “ética das virtudes”, em consonância com a tradição aristotélico-tomista que tem no seu arcabouço a primazia da condução da vontade humana pela racionalidade.

 

O contemporâneo está mais inserido nessa preocupação estética. É a sociedade do espetáculo e da imagem. A cultura digital potencializou essa sistemática social. Em âmbito eclesiástico, em muitos contextos, está sendo trocado o ético pelo estético; o substantivo pelo adjetivo; o verdadeiro pelo falso; o justo pelo político. Essas novas reviravoltas são sinais da “época de mudanças e de uma mudança de época”. As condições históricas têm sufocado e transformado as relações. Por isso que as conclusões da segunda etapa do Sínodo enfatizaram a preocupação com a “conversão das relações”. O eu emotivista é o eu que sufocou a racionalidade e a sua inserção no que é genuinamente humano. Por exemplo, tentar substituir, ou compensar, um bebê natural por um artificial. A Europa já padece do baixo índice de natalidade. Em nossas conjunturas, estamos nos encaminhando para viver o mesmo desafio demográfico. Pensando sobre essa questão, senti a vontade de reler a Humanae Vitae de Paulo VI e meditar sobre a redescoberta da sua mensagem. O  que estamos vivendo talvez pudesse ser tido em conta para revisitarmos a sua mensagem que passa a ser profética, quer queiramos, quer não; já que estamos buscando em animais e coisas, o que uma criança deveria poder dar.

 

O olhar para o “bebê reborn” pode nos trazer uma oportunidade de aprofundamentos antropológicos na atualidade. Não é algo a ser desprezado. Pode ser uma oportunidade de crescimento antropológico e de chamada de atenção para o que estamos nos tornando, enquanto projeto de civilização. As perspectivas estão sendo apresentadas sempre tendo a preocupação de colocar tudo pelo viés ideológico e como consequência do avanço científico. É o progresso e o desenvolvimento em detrimento da centralidade do humano. É tempo de olharmos para nós mesmos e nossos semelhantes, seu fim e sua autêntica realização. Só o humano pode dizer ao humano que é no Eu e no Tu que nos completamos. Essa integração é o que nos torna sujeitos de relações e abertos ao totalmente Outro.

 

Sendo assim, faz-se mister que não abandonemos a racionalidade. Em nossas estruturas sociais e eclesiais não podemos ceder à tentação de eclipsá-la. Esse vácuo não pode continuar. O negacionismo da razão é um problema que tem nos tornado fugitivos da Verdade. Ela quer nos encontrar; nos busca e nos deseja. Não deveríamos falar de pós-verdade, já que Ela está aqui e agora. O seu desvelamento pode ser percebido quando não ofuscamos a luz da razão; aquela que fez-se carne e habita entre nós (cf. Jo 1,14-15). Na atualidade os debochados podem encontrar prazer em distanciar a racionalidade das suas ações, absorvendo o estético e abandonando o ético. Isso é lastimável, já que o que é belo para o cristão, também precisa ser o bom. Num cristianismo lúcido e harmonizador, fé e razão caminham juntas, como duas asas pelas quais podemos chegar ao conhecimento da Verdade (cf. Fides et Ratio). Assim o seja!

 
 
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