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ARTIGO - A crise ecológica e a idolatria do mercado

Diác. Paulo Felizola

Paróquia de Nossa Senhora do Ó – Nísia Floresta

 

“Contemplar o nosso pequeno e precioso planeta azul desde o espaço sideral, nas imagens enviadas pelas sondas espaciais, provoca em nossa geração um sentimento novo: somos habitantes de uma casa comum, participando de um destino coletivo, ainda que nossa casa comum sofra as consequências de uma família humana conflituosa” (SUSIN, 2006, p. 9).

 

Observemos que a síntese acima, obrigatoriamente, nos remete a uma reflexão sobre o atual estado do nosso planeta, no que diz respeito às causas, consequências e perspectivas futuras como necessidades para o estabelecimento de uma nova consciência ambiental

 

que perceba a intrínseca relação entre a reprodução e a qualidade da vida dos seres vivos (incluindo os humanos) e o seu meio ambiente. Isto é, a consciência de que a nossa vida está intimamente ligada ao meio ambiente e de que o modo como tratamos o nosso ambiente definirá o futuro da humanidade e de muitas outras espécies.

No entanto, não é demais lembrar que até à consolidação dessa nova consciência, o processo estabelecido configura-se como uma luta, cujo aspecto fundamental é passar da mera consciência para o impacto no modo concreto como as relações sociais, econômicas e políticas funcionam no dia a dia. Ou seja, se é verdade que a sociedade não muda sem uma nova consciência, também é verdade que não basta todos terem uma nova consciência, se esta não produz uma nova institucionalidade e não modifica de modo significativo o modo de reprodução da sociedade. Lutar somente pela nova consciência sem se preocupar com os mecanismos sociais e institucionais efetivos é cair em um idealismo infrutífero.

Com os pressupostos retro delineados, mesmo reconhecendo o risco de um tratamento apenas parcial da questão, nos limitaremos, somente, a identificar a incompatibilidade entre o sistema de mercado capitalista e a nova consciência necessária, fundada na vontade de Deus revelada em Jesus Cristo.

Primeiramente, para que nossa reflexão não pareça desvinculada de seu objeto, é mister, sem a pretensão de exauri-la, traçar os contornos da atual crise ecológica pela qual passa o planeta terra.

De um modo geral a crise ecológica pode ser sintetizada pela exaustão dos recursos naturais, pelo aquecimento global e pelas dificuldades à sustentabilidade da Terra.

No que diz respeito à exaustão dos recursos naturais, a crise ecológica pode ser identificada com a depredação da terra, na medida em que: constatamos a extinção de seres vivos no cotidiano de nosso planeta, o que significa o desaparecimento, para sempre de um acervo que a natureza havia, sabiamente, acumulado; a desertificação de grandes extensões de terra e a salinização das águas; o desmatamento em larga escala; a exaustão dos reservatórios naturais de água e das jazidas de hidrocarbonetos, principalmente petróleo e carvão.

Em relação à sustentabilidade, é de todos sabidos as ameaças contra a Terra, representadas pelas chuvas ácidas, que matam florestas e fazem mirrar as florestas; pelos dejetos químicos, que contaminam as fontes de água potável e os oceanos e envenenam o solo; pelos pesticidas que entram na cadeia alimentar e afetam a saúde dos seres vivos, inclusive do homem, e das gerações futuras; pelo lixo nuclear, especialmente perigoso; pela destruição da camada de ozônio, com a consequente exposição dos seres vivos aos raios ultravioletas, que produzem câncer de pele, catarata, debilitamento do sistema imunológico, danos à agricultura e á fotossíntese que responde pela cadeia alimentar de toda a terra; pelo aquecimento crescente da Terra, resultado da emissão de gases tidos como provocadores do efeito estufa, responsável pelas catástrofes ambientais como as grandes enchentes, as secas e o frio severos.

O que se deduz de todo esse processo de pilhagem e agressões é o existir de uma oculta imagem, resultado de um conflito existente no interior da família humana, que reduz a terra, a um reservatório morto de recursos a serem explorados, mas não contemplada como um supersistema sutilmente articulado em sistemas e subsistemas onde rochas, água, atmosfera, micro-organismos, animais e seres humanos formam um todo orgânico e dinâmico com relações de interdependência e sinergia que garantem a subsistência de todos e de cada um[1].

Assim sendo, é imperativo que se discuta qual venha ser a verdadeira fonte de tal crise. Segundo DE LA PEÑA (1989, pp. 160-166) quatro são as principais fontes da crise ecológica: a contaminação, provocada pela civilização industrial, que está transformando o planeta em um vertedouro de detritos; a superpopulação, provocada pela explosão demográfica; a extenuação dos recursos naturais, decorrente da exploração selvagem a que estes tem sido submetidos; a corrida armamentista, que demanda uma fenomenal massa de recursos, sejam financeiros, naturais ou humanos que, assim, são desviados de outras atividades importantes para a vida[2]

Uma leitura atenta seja em BOFF, DE LA PEÑA ou em RUBIO, indica a sociedade industrial como o lugar comum na crise ecológica. Assim sendo, seria lógico admitirmos que a crise ecológica ao ser provocada por uma sociedade industrial, o foi porque deu ao ser humano um poder de Leviatã, para manipular a natureza por meio da aplicação da tecnociência, de um modo quase sem limites. Efetivamente, a crise ecológica seria o esgotamento da natureza através da intervenção humana, especificamente mediada por um determinado tipo de uso de tecnologias, tornando-a, assim, uma crise fatal para todos os seres vivos e para o meio ambiente natural.

Compreender a crise ecológica a partir da intervenção tecnológica do ser humano na natureza obscurece o verdadeiro entendimento do problema e só conduz a afirmações do tipo que culpa o cristianismo pela crise, por ter originado o Leviatã como resultado de uma pregação explicita de que tal procedimento era vontade de Deus, já que assim estava escrito em Gn 1,28.

Como nosso objetivo não é o de assumir uma posição apologética, nos limitaremos apenas a fazer nossa as palavras de DE LA PEÑA (1989, pp. 158-160), para quem, sinteticamente,

“o homem imagem de Deus, a quem em Gn 1,28 se entrega o destino do que foi criada, não é, em absoluto, o senhor arrogante e despótico; é apenas intendente e gerente, administrador e tutor. O encargo que recebeu não o autoriza a saquear e destruir a realidade que lhe é confiada e da qual é solidário (Gn 2,7), mas sim o obriga a promovê-la, dar-lhe tutela e leva-la até a plenitude; o gerenciamento encomendado subentende sabedoria, prudência e fidelidade e exclui o egoísmo, a avareza e a irreflexão. Gn 2,15, que antecede por três séculos Gn 1,28, já falava da guarda da terra, e não apenas de sua exploração, por parte do homem”[3].

Por outro lado, a mesma leitura dos três autores, acima citados, também, nos indica que se a crise ecológica é filha legítima da sociedade industrial, ela é, também, consequência do modo de produção capitalista, que pelo sistema concorrencial de mercado transformou a natureza, a Terra, em mercadoria, seja para o consumo imediato ou para o consumo indireto, como meio de produção, portanto no veículo do lucro e da acumulação ilimitada.

Nesse sentido, o capitalismo transforma a Terra na forma elementar da riqueza capitalista, por transformá-la em uma coisa útil, necessária à satisfação de necessidades humanas. No entanto essa satisfação somente poderá ser concretizada, pelo confronto, de um lado, de uma capacidade aquisitiva – a demanda – e, por outro, com a disponibilidade da mercadoria para aquele que a julga necessária – a oferta. Vejamos que a natureza é transformada em mercadoria, tanto por ter sido adquirida, pelo capitalista, em um mercado, como vendida pelo capitalista, também, em um mercado específico. Notemos que o mercado capitalista, como instituição social, é elevado, assim, a condição de coordenador único da divisão social do trabalho e de ser autorregulável, portanto, livre de limites[4]. Assim, a lógica liberal capitalista, seja em sua forma clássica ou neo, tem no mercado o lugar comum da busca dos interesses próprios individuais, como a única forma eficiente de se chegar ao bem comum. Ou seja, no mercado os interesses individuais seriam convergentes com os interesses comuns, porém como os interesses individuais estão subordinados aos interesses do capitalista, o lucro, o interesse comum, também, estaria convergente ou subordinado ao interesse do capitalista, na forma como diz Smith:

“Para aqueles que vivem de salários, não interessa uma grande riqueza social, mais uma riqueza crescente”. (SMITH, 1996, p. 409).

A riqueza crescente, aqui se identifica com o crescimento do lucro, ou seja, os indivíduos só podem ser satisfeitos em suas necessidades se antes satisfizerem os interesses dos capitalistas, caso contrário não haverá riqueza crescente. É como diz SUNG:

“Em uma linguagem religiosa mais tradicional, isso seria apagar a diferença entre o amor e o egoísmo. A melhor forma de viver o amor ao próximo, ao pobre, seria vencer a tentação de fazer o bem e continuar sendo egoísta no mercado, buscando o interesse próprio com mais eficiência. Assim, vencer a tentação de fazer o bem através de políticas econômicas e sociais passa a ser a principal tarefa espiritual no campo social (apud SUSIN, 2006, p. 345).

Notemos que essa é uma lógica cruel, pois, em nome das leis do mercado, seja direta ou indiretamente através da destruição da natureza, exige-se o sacrifício de vidas humanas, na medida em que as subordina aos números do lucro[5]. Porém, como a exigência de sacrifícios de vidas humanas, em nome de qualquer lei, seja civil ou religiosa, segundo a tradição bíblica, é considerada IDOLATRIA[6], logo, a fé no mercado é uma fé idolátrica, que exige sacrifícios de vidas humanas em nome de uma instituição humana elevada à categoria de absoluto. Nesse sentido, as leis do mercado podem ser consideradas como a encarnação do sagrado no mundo de hoje (SUSIN, 2006, p. 346), pois, o que conta é o lucro, o ganho financeiro como resultado de uma relação doentia entre tecnologia, economia e meio ambiente que mata destrói o meio ambiente e assassina defensores do meio ambiente, como nos ensina a Encíclica Laudato Si e, portanto, nos convida a buscar outras formas de entender a economia e o progresso

 

 

Uma nova consciência é necessária que exija, por um lado, a compreensão da idolatria do mercado, como a realização do mundo das tentações, como narrado em Lc 4, 1-13 e, por outro, a sua superação pela prática do programa da atividade de Jesus, também, narrado em Lc 4, 14-21, no qual o cerne do servo sofredor, guiado pelo Espírito de Deus, é a prática do amor, que o mercado por sua natureza nega, conforme é explicitado por um dos corifeus do neoliberalismo, o Sr. Milton Friedman, no livro Free to Choose: 

 

 “Os preços que emergem das transações voluntárias entre compradores e vendedores – em suma no mercado livre – são capazes de coordenar a atividade de milhões de pessoas, sendo que cada uma conhece apenas o seu próprio interesse, de modo que a situação melhore (...). O sistema de preços realiza essa tarefa pela falta de qualquer direção central, e sem que seja necessário que as pessoas falem entre si, ou que se amem (...). A ordem econômica é um incidente, é a conseqüência não intencional e não desejada das ações de um grande número de pessoas movidas somente pelos seus interesses (...)”. (Apud ROSANVALLON, 2002, p 12)[7]

Se o amor revelado por Deus em Jesus Cristo expressa a vontade do Pai pela salvação da humanidade é, portanto,

“na fé na função criadora e recriadora de Jesus Cristo, que o cristão recebe a revelação do futuro para o homem, para a humanidade e para o seu mundo: a semente do homem novo já está plantada e os sinais do novo céu e da nova terra atuam já no presente. O mundo criado e o homem não estão destinados à destruição, mas a uma radical transformação” (RUBIO, 2001, p. 215).

...Assim, o Homem novo será o homem de consciência nova, o homem convertido, que

“guiado pelo Espírito do Ressuscitado, é chamado já na história atual a viver uma experiência espiritual, vivificadora, existência de abertura comunitária, de universalização-comunhão (em relação a Deus, aos outros seres humanos e à criação)” (RUBIO, 2001, p. 217).

A consciência nova que conduzirá o homem novo deve ser a que provém do amor divino, o único caminho para a superação do conflito presente no seio da família humana e o consequente estabelecimento de uma nova direção em nossa casa comum: a Terra.

 

 

BIBLIOGRAFIA

ARNOULD, Jacques. Terra habitável: um desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs. www.unisinos.br/ihu. acessado em 24/03/2007.

BOFF, Leonardo. O pecado maior do capitalismo: o risco do ecocídio e do biocídio. www.leonardoboff.com. Acessado em 26/03/2007.

DE LA PEÑA, Juan L. Teologia da Criação. São Paulo: Loyola, 1989.

GARMUS, Ludovico. “Uma leitura ecológica dos relatos de Gn 1-3”. In: MÜLLER, Ivo. Perspectiva para uma nova teologia da criação. Petrópolis: Vozes, 2003.

GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Da possibilidade de morte da Terra à afirmação da vida. A teologia ecológica de Jürgen Moltmann. www.unisinos.br/ihu. acessado em 24/03/2007.

MENDES, Armando Dias. “Envolvimento & Desenvolvimento: introdução à simpatia de todas as coisas”. In: CAVALCANTI, Clóvis. Desenvolvimento e natureza: estudo para uma sociedade sustentável. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1995.

PAPA FRANCISCO. “Laudato Si”. Vaticano 2015.

ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo Econômico: história da idéia de mercado. Bauru: EDUSCO, 2002.

RUBIO, Alfonso García. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São Paulo: Paulus, 2001.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

SUNG, Jung Mo. “Teologia, espiritualidade e mercado”. In: SUSIN, Luiz Carlos (org.). Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006.

SUSIN, Luiz Carlos (org.). Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006.


[1] Para uma detalha abordagem a respeito das agressões e pilhagem da Terra ver BOFF, Leonardo. “O pecado maior do capitalismo: o risco do ecocídio e do biocídio” disponível em www.leonardoboff.com

[2] A mesma linha de argumentação também pode ser lida em RÚBIO (2001, pp. 535-538)

[3] O destaque é nosso.

[4] É essa ausência de limites externos ao mercado capitalista, seja de caráter social ou natural, que permite a afirmação de que o sistema econômico capitalista tem como meta fundamental a acumulação ilimitada de riqueza. Como a riqueza capitalista configura-se como uma imensa acumulação de mercadorias é de se deduzir que a preocupação com a natureza, e sendo esta a fonte primária para o processo de produção, será enviada para o limbo. O importante é o lucro advindo da troca capitalista.

[5] O ser humano, por sua força de trabalho e a natureza, como objeto desse trabalho humano, são considerados apenas elementos do processo de trabalho, na produção da mercadoria.

[6] A prática da idolatria é a prática da inversão entre o bem e o mal, na medida em que o mal, em nome de um Deus deixa de ser mal e passa a ser um sacrifício necessário à salvação, logo, um bem.

[7] O destaque é nosso.

 
 
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