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O Evangelho e a Súplica da Benção


Pe. Matias Soares

Mestre em Teologia Moral (Gregoriana-Roma)

Pós-graduado em Teologia Pastoral (PUC-Minas)

Membro da SBTM (Sociedade Brasileira de Teologia Moral)

Pároco da paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório-Natal/RN


A crise pela qual passa a Igreja é, como aconteceu em outros momentos de sua longa história, sempre se originou quando ela colocou em segundo plano os valores do Evangelho, puro e simples. Sem pretender ser “profeta da desventura” (cf. João XXIII, discurso de abertura do Vat. II), mas observando os vários cenários sociais e eclesiais, é perceptível a constatação de que vivendo, nessa época de mudanças e mudança de época, estamos a experimentar mais uma profunda crise eclesial. Claro que, num outro contexto, mas lendo as preocupações que ensejaram o Concílio Vaticano II, podemos inferir que, mais uma vez, necessitamos nos questionar sobre qual o nosso lugar no mundo de hoje? A nossa existência, tanto interna, quanto externamente, na nossa relação com o mundo contemporâneo, tem sido marcada pela dinâmica do Evangelho? É perceptível, que a grandiosidade do pontificado do Papa Francisco esteja justamente em dar “um rosto” mais evangélico ao modo de ser da Igreja neste momento crítico da história da humanidade, tão marcado por guerras, injustiças sociais e desafios climáticos, que infelizmente muitos na própria Igreja estão lutando para não aceitar e desconsiderar pela ilusão de que ainda vivemos em tempos nos quais os dramas antropológicos – pós-humanismo e trans-humanismo – ainda não foram ressignificados e existindo em novos estágios.


A Igreja é uma instituição que foi empoderada politicamente, principalmente pelo reconhecimento do cristianismo oficial do Império a partir do século IV (380-Teodósio). As características desta primeira fase da sua história – aqui ela é identificada com o cristianismo – são o dinamismo missionário e o testemunho radical pelo martírio. A dinâmica sacramental era mistagógica e comprometida com as pequenas comunidades, que iam sendo formadas como ‘igrejas domésticas e promovendo o fermento na ‘massa’. Depois do século IV, o seu avanço em quantidade, nem sempre significou seu desenvolvimento em qualidade. A relação continuada com o poder temporal, fez com que a sacramentalização fosse assumindo cada vez mais um valor maior do que o processo de adesão à pessoa de Jesus Cristo, como consequência da ação evangelizadora dos novos componentes da vida da Igreja.


Essa construção eclesiástica será preponderante até a Reforma Protestante (Séc. XVI). As críticas feitas por Lutero acerca da importância do primado da fé e da sagrada escritura ainda não foram acolhidas por aquilo que até aquele momento foi tido como o arcabouço doutrinal da catolicidade. Mais uma vez, com a Contrarreforma, a ênfase será dada aos sacramentos. Os desdobramentos serão direcionados para que a vida sacramental fosse a base de sustentação da identidade católica e cristã. Com o Concílio de Trento (1545-1563) o esquema sobre a justificação da ‘fé pelas obras’ ganhará força teológica e será também um dos diferenciais para que a existência cristã católica seja pensada a partir da vida sacramental, que na sua experiência concreta não levava à maturidade da fé e adesão consciente à pessoa de Jesus Cristo. Esses pressupostos históricos são sempre necessários para que saibamos que em cada momento, a evolução da teologia e da prática eclesial foram acontecendo como necessária abertura aos problemas pastorais recorrentes.


O mundo moderno, com suas revoluções subjetivas e estruturais, mudou. Com ele as concepções de mundo, as questões que vinculavam o sentido da existência às verdades últimas e finais tendem agora ao que é imediato e perceptível. O que era atribuído a Deus, neste momento da história passa a ser guiado pelo humano. Já a visualização de que até os aparatos da ‘inteligência artificial’ tenham o seu lugar próprio na determinação das ações ‘pós-humanas’. A Igreja, mais uma vez, sente-se desafiada a saber qual é o seu lugar na história. O que pode ser dito ao homem de hoje, que cada vez mais torna-se indiferente ao que é dito pela Igreja e nela. Isso tem sido agravado porque ‘alguns’ de seus membros escandalizaram e agem de modo inconsequente, sem amá-la e usando-a para esconderem-se por conveniência. O Papa Francisco e a maioria que o apoia, principalmente, os que estão vendo nele um ‘sinal de esperança’ para os tempos contemporâneos e sombrios que nos assolam, são alvejados constantemente pelos que preferem estar na zona de segurança, sem anseio de adentrar no mundo, com suas sombras para que deveras sejam Luz para os povos, especialmente para os que estão nas periferias geográficas e existenciais (cf. Lc 4, 17-19).


Enquanto escrevo esta reflexão, sou envolvido através da força global dos meios de comunicação, que apresentam de acordo com suas conveniências as repercussões da Declaração promulgada pela Congregação da Doutrina da Fé – Fiducia supplicans -, sobre a possibilidade da Benção para casais em ‘nova união e pessoas homoafetivas’. O documento tem a anuência do Papa Francisco. É coerente com o seu ‘estilo pastoral’. Não nega a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimônio. É um texto autoexplicativo. É enfático em afirmar que a teologia sobre o significado da benção e da teologia sacramental para os casais continua intocável. Apresenta a importância e o sentido pastoral da benção. Na sua base está a teologia da graça, que não é limitada pelos sacramentos, mesmo que estes sejam para os que estão na Igreja, através da adesão pela fé à pessoa de Jesus Cristo, fontes objetivas do amor santificante de Deus. A súplica, ou o pedido da benção, trás a consideração do desejo, que não pode ser julgado, do acolhimento por parte das ‘pessoas’ que antropologicamente estão sempre abertas ao transcendente.


O Cardeal Raniero Cantalamessa, na sua primeira pregação do advento à Cúria Romana (15/12/2023), sublinhava que “Jesus não espera que os pecadores mudem de vida para poder acolhê-los; mas os acolhe, e isso leva os pecadores a mudar de vida. Todos os quatro Evangelhos – Sinóticos e João – são unânimes nisso”. Com a benção, a Igreja não sacramentaliza a situação irregular, mas “no seu mistério de amor, através de Cristo, Deus comunica à sua Igreja o poder de abençoar. Concedida por Deus aos seres humanos e por eles concedida aos outros, a bênção se transforma em inclusão, solidariedade e pacificação. É uma mensagem positiva de conforto, cuidado e encorajamento. A bênção expressa o abraço misericordioso de Deus e a maternidade da Igreja que convida os fiéis a terem os mesmos sentimentos de Deus para com os seus irmãos e irmãs” (cf. FS, 19).

Em meio a tudo isso, há também uma chamada ao ‘exame de consciência” de toda a Igreja. Nela, há muitas doenças humanas, espirituais e pastorais. O Papa Francisco, mesmo que de modo indireto, mas constante e sem medo, pede que o mundanismo espiritual, o farisaísmo e o clericalismo, que é uma forma corrompida de gerenciar o poder na Igreja, não sufoquem a alegria do evangelho. Podemos ver em Francisco sim, um reformador (cf. EG, n. 34-49). Com ele, estamos percebendo que há a urgência dum ‘catolicismo mais evangélico’, mais missionário, mais servidor e com estilo sinodal, no qual exista lugar para “todos, todos, todos...!” A própria Igreja precisa encarar os ‘fantasmas’ que a assombram constantemente, por não ter tido o discernimento de encarar os dramas existenciais de muitos que estão dentro dela, com suas incongruências testemunhais, que a colocam, enquanto instituição, em situações de riscos cotidianos, publicizados nos meios de comunicação e usados para desestabilizar a sua voz. Para quem vive nas “cúrias”, sem a escuta das fronteiras, dos lugares teológicos da cultura hipermoderna, tudo parece estar bem. Perde-se muito tempo, na briga pelo poder, pelejas feudais e planos que não encarnam a realidade das pessoas. Há um afogamento da “paixão missionária”. Essa mesma, que deveria nos colocar em inquietude pessoal e eclesial, com desejo de ‘saída’ para anunciar e proclamar a Boa Notícia do Reino de Deus a todos, sem distinção, nem acepção de pessoas. Temos que reviver a dinâmica das primeiras comunidades, que partiam do Kerigma para a consequente conversão evangélica e comunitária.


Enfim, com as discussões que estão a surgir em todos os ‘lugares públicos’, principalmente pelo que é massificado, cabe a todos nós, com postura serena, realista e confiante de comunhão e responsabilidade, o estado de vigilância e prontidão, na oração e com amor à verdade. A leitura dos sinais dos tempos, com abertura ao dinamismo do Espírito e a interiorização da palavra de Deus, que foi, é e sempre será a nossa via para que possamos dar respostas coerentes aos desafios sempre novos que questionam a Igreja e a sua prática pastoral, é a armadura que nos condiciona para avançarmos ao diferente, com entusiasmo e confiança. Seja na relação para com os casais de nova união, as pessoas homoafetivas e demais irmãos e irmãos que estão distantes e que ‘ainda’ esperam esse abraço acolher e misericordioso dessa Igreja, que é existe para ser sacramento de salvação para a humanidade, que está no mundo. Assim o seja!

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