ARTIGO - "É preciso obedecer a Deus, antes que aos homens" (At 5,29)
- pascom9
- há 15 horas
- 3 min de leitura

Dom Joao Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
Essa frase, pronunciada por São Pedro diante do Sumo Sacerdote que acusava os apóstolos de desobedecer às determinações do Sinédrio (At 5,27-41), constitui uma expressão máxima da fidelidade a Deus diante das autoridades humanas — especialmente quando estas promulgam leis contrárias à verdade divina. São Pedro afirma, assim, o princípio da supremacia da lei divina sobre quaisquer determinações humanas. De fato, leis civis e mandatos de autoridades que contrariem os preceitos de Deus não obrigam moralmente os fiéis. A liberdade cristã fundamenta-se na obediência à verdade revelada.
Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica (I-II, q. 96, a. 4), ensina que "uma lei humana não tem força de lei na medida em que se afasta da razão, e, portanto, deve ser julgada como uma forma de violência mais que de lei". Para Santo Tomás, a lei é verdadeira na medida em que participa da lei eterna (isto é, da razão divina que governa o universo). Se a lei humana se desvia da justiça, não obriga em consciência, exceto para evitar escândalo ou desordem, mas não deixa de ser injusta.
No mesmo espírito, ao tratar da lei injusta, Santo Tomás afirma: "Se a observância da lei injusta conduzir a um escândalo ou dano maior à comunidade, deve-se resistir publicamente" (Suma Teológica, II-II, q. 104, a. 6, ad 3).
Santo Agostinho, por sua vez, formula o célebre princípio: "Uma lei injusta não é lei" ("Lex iniusta non est lex") (De libero arbitrio, I, 5,11). Ele insiste que a verdadeira lei deve conduzir à justiça e à ordem do bem comum. Portanto, se uma norma humana contraria o direito divino ou natural, ela carece de verdadeira legitimidade e não merece obediência.
O Catecismo da Igreja Católica confirma esta doutrina ao afirmar que "a autoridade humana só tem razão de ser se se orientar para a realização do bem comum, segundo a ordem moral que dela exige o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. (...) A autoridade cuja legislação é contrária à lei moral, à justiça e aos direitos fundamentais não obriga em consciência." (CIC, §1902-1903).
E, explicitamente, sobre a obediência, ensina que "o cidadão é obrigado em consciência a não seguir as prescrições das autoridades civis quando estas são contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho." (CIC, §2242).
O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, também reafirma esse princípio, ao proclamar que "não se deve obedecer a leis que contrariem os direitos fundamentais da pessoa e os preceitos da fé e da moral cristã. Quando o legislador impõe prescrições injustas, a Igreja ensina que se deve objetar em consciência" (CDSI, nº 399).
A objeção de consciência, enquanto expressão da fidelidade a Deus, pode até mesmo levar à desobediência civil legítima, que é, nesse caso, não apenas um direito, mas um dever moral.
A firmeza dos apóstolos diante do Sinédrio permanece como um testemunho para todos os cristãos de todos os tempos: a fidelidade a Deus está acima da obediência a autoridades humanas quando estas contradizem a verdade e a justiça divinas. A coragem de "obedecer a Deus antes que aos homens" não é um ato de rebeldia, mas um exercício de liberdade espiritual e de responsabilidade moral.
Em tempos em que leis ou normas podem promover o que é contrário à vida, à dignidade humana, à liberdade religiosa e à verdade, os cristãos são chamados a se manterem firmes na verdade do Evangelho, mesmo a custo de perseguições ou injúrias. Assim como os primeiros apóstolos saíram do Sinédrio "contentes por terem sido considerados dignos de injúrias por causa do nome de Jesus" (At 5,41), também hoje cada fiel é convidado a dar testemunho, com alegria e coragem, da primazia de Deus em sua vida.