ARTIGO - Entre raízes e rumos: o Movimento de Natal e o Pacto Educativo Global em Diálogo
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Por Ir. Vilma Lúcia de Oliveira, FDC
Membro da Congregação das Filha do Amor Divino, Historiadora e Professora, Coordenadora Geral do Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal, Membro da Comissão de Cultura e Educação da Arquidiocese de Natal, Coordenadora da Subcomissão de Bens Culturais da Igreja.
Sumário
Este artigo propõe um diálogo entre o Histórico Movimento de Natal (MN), surgido no Rio Grande do Norte entre as décadas de 1940 a 1960, e o atual Pacto Educativo Global convocado pelo Papa Francisco em 2019. A intenção é mostrar que, embora o Pacto represente uma proposta educativa relevante e universal, ele não substitui — nem pretende substituir — a experiência encarnada e transformadora do MN. O texto articula fundamentos teóricos (como Paulo Freire, Edgar Morin, Jon Sobrino), documentos da Igreja (Concílio Vaticano II, Evangelii Gaudium, Laudato Si’) e algumas reflexões, para os que se exercitam e buscam práticas educativas com raízes históricas e rumos proféticos.
1. O Movimento de Natal: Uma Experiência de Igreja Encarnada
Toda caminhada que aponta para o futuro precisa reconhecer suas raízes. O MN surgido no chão sofrido do Rio Grande do Norte, é uma dessas raízes vivas. Nasceu como resposta pastoral e política da Igreja às desigualdades sociais, articulando fé e vida por meio de Escolas de Fé e Política, Comunidades Eclesiais de Base e ações voltadas à alfabetização, cidadania e organização popular. Essa prática encarnada antecipou reflexões que mais tarde seriam formalizadas pela Igreja. Como testemunha o Pe. Collard em artigo publicado no Dimanche e traduzido pelo SAR em 1962:“Passagens inteiras da Encíclica Mater et Magistra dão a impressão de formular em doutrina o que D. Eugênio Sales começou a realizar na prática.”
A evangelização promovida pelo Movimento não se limitava ao culto, mas se estendia à cultura, à política, à vida concreta e todo o Povo de Deus. Como afirma a Evangelii Nuntiandi (1975), “não há verdadeira evangelização se não se leva em conta a interação entre evangelho e cultura.” Nesse sentido, o MN encarnou uma pedagogia da transformação. Ecoando Paulo Freire, “a educação não transforma o mundo. A educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo” (1970). Essa visão está no cerne do Movimento: formar sujeitos históricos capazes de transformar suas realidades com fé, consciência e ação.
2. O Pacto Educativo Global: Um Chamado Universal
Se o MN representa raízes, o Pacto Educativo Global convocado por Francisco em 2019, aponta rumos. Propõe sete compromissos fundamentais para renovar a educação como força transformadora: Colocar a pessoa no centro; Escutar as gerações mais novas; Promover a mulher; Responsabilizar a família; Abrir-se à acolhida; Renovar a economia e a política; Cuidar da Casa Comum.
Esses princípios dialogam com a Laudato Si’ (2015), que afirma: “Tudo está interligado, como se fôssemos uma só família” (n. 92). O Pacto busca reconstruir essa interligação por meio de uma educação integral, ética e comunitária. Francisco insiste: “não se trata apenas de transmitir conteúdos, mas de formar pessoas capazes de transformar o mundo” (Discurso sobre o Pacto Educativo Global, 2019). Essa formação exige espiritualidade encarnada, como aquela vivida no MN.
O filósofo Edgar Morin, referência do pensamento complexo, afirma: “Educar é preparar para enfrentar a incerteza, o inesperado, o erro e a aventura do espírito humano” (Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, UNESCO, 1999). Essa visão dialoga com o Pacto e com o Movimento, ambos comprometidos com uma educação que articula saberes e valores, razão e esperança. O que hoje é chamado de “educação integral” já pulsava nas práticas do MN. Assim, o Pacto não inaugura um caminho novo, mas reconhece e prolonga uma trilha já aberta. fecundada por experiências locais que souberam unir fé, política e educação. O MN encarnou esses princípios antes que fossem nomeados globalmente.
3. O Movimento de Natal: Tradição que Fecunda o Presente
Entre raízes e rumos, a tradição não é peso, mas impulso. Como lembra Fernando Pessoa, o novo verdadeiro não rompe com o que veio antes — ele o atualiza, o reinterpreta, o fecunda. O MN, nesse sentido, é tradição viva que germina no presente do Pacto Educativo Global. Para que essa fecundidade se realize, é preciso: Reconhecer sua história como fonte. Reinterpretá-la à luz dos desafios atuais. Promover o diálogo entre saberes da sociologia à teologia, da pedagogia à eclesiologia, da filosofia à história. Como afirma a Evangelii Gaudium (2013), “a tradição é a garantia do futuro e não a guarda de cinzas.” O MN é caminho, não monumento.
Francisco nos recorda que “a opção pelos pobres é uma categoria teológica antes de ser cultural, sociológica, política ou filosófica” (Evangelii Gaudium, n. 198). A espiritualidade cristã, portanto, não se limita à interioridade: ela se encarna no compromisso com os vulneráveis. O MN expressa essa espiritualidade encarnada — viva, concreta, transformadora.
Joseph Ratzinger advertia: “a verdadeira crise da Igreja é uma crise de fé”, e que “a fé deve se tornar visível no amor que se compromete com o outro” (Introdução ao Cristianismo, 1968). Fé, portanto, não é fuga — é presença que transforma.
Jon Sobrino completa: “a espiritualidade cristã começa com o seguimento de Jesus, que se fez pobre e solidário com os crucificados da história” (Jesus, o Libertador, 1991). O MN encarna esse seguimento — ontem e hoje — como expressão da fé que se compromete com os pobres e com a justiça.
Conclusão: Entre Raízes e Rumos
O diálogo entre o MN e o Pacto Educativo Global revela que o futuro da educação cristã brota de raízes profundas. O MN nascido do chão sofrido do Rio Grande do Norte, é mais que memória: é profecia encarnada. Sua prática pastoral, enraizada na Doutrina Social da Igreja, antecipou caminhos que hoje o Pacto Educativo Global propõe ao mundo. O que foi vivido localmente como fé que alfabetiza, organiza e transforma, ressoa agora como chamado universal à educação integral.
Como afirmou o Pe. Collard, a Encíclica Mater et Magistra apenas doutrinou o que já se vivia no chão Nordestino. O vivido localmente como prática profética, hoje inspira o mundo como proposta universal. É iluminador o dizer de Fernando Pessoa, o novo só tem sentido quando fecundado pela tradição. O Pacto não substitui o Movimento: ele o prolonga, o reconhece, o atualiza. O Pacto Educativo Global, por sua vez, é um horizonte que nos interpela, não só os dirigentes, as autoridades, mas todo o Povo de Deus principalmente.
Ele nos convida a ampliar o olhar, a integrar saberes, a renovar práticas. Mas esse horizonte só será fecundo se estiver enraizado e, no nosso caso, essa raiz tem nome: MN. Que o Pacto não seja um novo nome para o que já foi vivido, mas uma nova escuta do que ainda pulsa. Que o MN não seja apenas lembrado, mas continuado como semente que germina, como luz que se reparte, como pão que se multiplica.
Entre raízes e rumos, a Igreja é chamada a formar sujeitos históricos — capazes de transformar suas realidades com fé, saber e justiça. O MN é testemunho de que isso é possível. O Pacto Educativo Global é convite para que isso continue.