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ARTIGO - Como a linguagem humana pode falar de Deus?

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Dom João Santos Cardoso

Arcebispo de Natal

 

No Livro X das Confissões, Santo Agostinho, ao investigar a memória, realiza um exame teológico e existencial da própria consciência. Embora o foco principal seja esse itinerário interior, ele também reflete sobre a possibilidade de falar de Deus com palavras humanas. Reconhecendo a distância entre a grandeza do mistério divino e os limites da linguagem, lança-se, ainda assim, na tarefa de encontrar termos que, purificados de suas limitações, possam expressar algo do Infinito.


Essa aventura parte de um ponto profundamente pessoal: o desejo de conhecer Aquele que já o conhece por inteiro. “Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim […] para Vos possuir sem mancha nem ruga” (cf. X, I). As palavras, porém, mostram-se frágeis diante dessa tarefa. Por isso, Agostinho adverte para o necessário cuidado com a linguagem: é preciso, de um lado, escolher expressões belas e dignas para falar de Deus; de outro, reconhecer que nenhuma definição esgota o Ser que transcende toda medida (cf. X, II). Falar sobre Deus, portanto, requer humildade intelectual, purificação dos conceitos para elevá-los ao seu sentido mais pleno e criatividade espiritual, numa atitude que une rigor filosófico e teológico, sensibilidade afetiva e abertura ao dom divino.


Cada termo aplicado a Deus — “verdade”, “alegria”, “luz”, “beleza” — precisa ser depurado de seu uso cotidiano para revelar um significado mais elevado (cf. X, XXV). Essa operação, próxima da via catafática, não elimina o mistério, mas manifesta reverência por ele. Falar de Deus não significa aprisioná-lo em conceitos, mas abrir espaço para que o Inefável resplandeça no que conseguimos dizer.


Ao refletir sobre a memória, Agostinho descreve-a como “vastos palácios”, onde se guardam imagens, ideias e afetos (X, VIII). Percorrer esses recantos interiores é, para ele, um caminho para encontrar Deus, que habita no mais íntimo de nós: “Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora a te procurar” (cf. X, XXVII). Explorar a memória torna-se, assim, um itinerário para o encontro com o Criador.


Mais do que um tratado filosófico, o Livro X das Confissões é um convite ao encontro com o divino no coração humano. Embora conscientes de sua insuficiência, as palavras em Agostinho tornam-se ponte entre a experiência do homem e a Beleza Suprema: “A vida feliz consiste em alegrar-se em ti, de ti e por ti: esta é a vida feliz, e não há outra” (X, XXII).


Agostinho mostra que, usada com amor e prudência, a linguagem pode ser reflexo — imperfeito, mas verdadeiro — daquele que ultrapassa todo entendimento. Ao purificar conceitos, recorrer à memória e à experiência pessoal e integrar razão, Escritura e oração, ele constrói um discurso capaz de falar de Deus sem reduzir o mistério. Essa união entre fé e razão torna seu pensamento vibrante e existencial, pois, para ele, a fé não anula a razão, mas a amplia, abrindo novas dimensões ao conhecimento.


A palavra humana, quando nasce da busca sincera e da graça, torna-se eco do Verbo eterno, abrindo-nos à comunhão com a Verdade e a Beleza divinas. Dessa forma, o pensamento agostiniano alia precisão filosófica, sensibilidade interior e densidade teológica, sem pretender encerrar o mistério, mas testemunhar um encontro que se traduz em confissão. Mesmo diante da insuficiência dos signos, Agostinho elabora uma verdadeira “gramática da transcendência”, capaz de orientar o leitor para a Beleza Suprema e mostrar como a linguagem, purificada e iluminada, pode servir à verdade sobre o divino, ainda que nunca o esgote.

 
 
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