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ARTIGO - A Fenomenologia do Olhar



Dom João Santos Cardoso

Arcebispo de Natal

 

O olhar é um gesto simples, cotidiano, quase automático. No entanto, por trás desse ato aparentemente comum, esconde-se um universo de significados, intenções e afetos. A fenomenologia do olhar, isto é, aquilo que se revela na experiência de olhar e nos múltiplos sentidos que esse termo assume na vida concreta, abrange uma vasta gama de vivências e significações. O olhar não é apenas um movimento dos olhos; é uma atitude diante do mundo, das pessoas e de nós mesmos.


Para compreender essa diversidade, podemos recorrer ao filósofo Maurice Merleau-Ponty, especialmente em Fenomenologia da Percepção. Para ele, perceber não é registrar imagens como uma câmera, mas envolver-se com o real. O olhar, portanto, não é neutro: ele comunica, interpreta, toca e é tocado. Nesse sentido, compreender o olhar é compreender a nossa maneira de estar no mundo.


O olhar também é um fenômeno linguístico. Ludwig Wittgenstein, com sua teoria dos jogos linguísticos, ajuda-nos a perceber que “o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem” (Investigações Filosóficas, § 43). Ao examinarmos os diversos usos do verbo “olhar” no cotidiano, percebemos que não existe um único significado, mas vários; e cada um depende do contexto, da intenção e da situação vivida.


Há, por exemplo, o olhar que fixa o alvo. Nesse caso, olhar é sinônimo de encarar, mirar, fitar. É o olhar atento, firme, determinado: “Ele fitou o horizonte”; “Ela encarou o desafio”. Esse olhar expressa foco e intenção e não apenas percepção.


Em outras situações, olhar assume um tom de curiosidade, indiscrição ou bisbilhotice, como na expressão: “Ela está espiando pela fresta”. Imagine alguém que entra em meu escritório, nota uma carta aberta e, sem lê-la, lança um olhar de soslaio e depois afirma: “Espiei a carta sobre a mesa”. Ele não a viu no sentido pleno; apenas a espiou e a interpretação desse gesto revela muito.


Em outro contexto, olhar pode significar guardar, cuidar ou vigiar, como na frase: “Meu amigo, olha esse menino para mim”. Aqui, olhar expressa zelo, atenção e responsabilidade.


Tudo isso mostra que o olhar é plural. Ele pode denotar fitar, espiar, guardar, cuidar, apreciar, ver, admirar e tantas outras nuances. Cada uso abre um horizonte próprio de sentido. Por isso, falar em fenomenologia do olhar é reconhecer que esse gesto tão humano abriga um mundo inteiro de significações. Como ensina Merleau-Ponty, olhar é sempre mais do que ver, é mergulhar no sentido das coisas e das pessoas.


Assim, quando olhamos, nunca fazemos apenas uma coisa. Olhamos com curiosidade, com carinho, com atenção, com espanto. Olhamos de frente ou de relance. Olhamos para ver e, às vezes, para não ver demais. O olhar é sempre revelação e escolha. É por meio dele que, antes de compreender o mundo, deixamo-nos tocar por ele.

 

 

 
 
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