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A ressurreição e a esperança no mundo


Por Pe. Matias Soares

Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal


Um dos desafios que a teologia tem na pós-modernidade é tornar a sua construção epistemológica um discurso capaz de penetrar na cultura pós-cristã. Nesta linha, o ítalo-germânico Romano Guardini, em sua obra clássica de cristologia - O Senhor - afirma que sobre a Ressurreição devemos dizer que “Cristo ressuscitou, a ressurreição é, pois, possível e a sua Ressurreição é o fundamento do mundo verdadeiro” (cf. O Senhor, pág. 408). Essa assertiva do teólogo ainda precisa ganhar mais aprofundamento em nossos dias. Analisando algumas perspectivas abertas da cristologia contemporânea, Karl Rahner assinala que “já foi dito que a verdade e a plenitude de conteúdo da protologia e da escatologia dependem essencialmente da clareza com a qual se vê que o homem, o mundo que o circunda e a história são ordenados desde o início ao Cristo e que o Cristo homem conserva a sua importância central também até o fim da história”. Pois, para ele, “ainda falta quase totalmente uma teologia cristocêntrica da história” (cf. Saggi di cristologia e di mariologia, pág. 65-91). A soteriologia, ou seja, a questão da salvação, precisa ser integrada às temáticas hodiernas da própria antropologia, já que esta ganhou contornos novos na fase pós-segunda guerra e trás desafios à própria teologia, que precisa ressignificar o modo de tratar a sua dogmática, avançando do estilo metafísico-jurídico para o histórico-salvífico. O paradigma histórico na teologia exige aprofundamento continuado e capacidade de serem percebidos os sinais dos tempos. Foi que o Concílio Vaticano II propôs e que nós precisamos levar a concretização, tanto na reflexão teológica, como na prática pastoral.

 

Celebrando a liturgia da Vigília Pascal fazemos o transcurso da economia da salvação, da qual Deus é o protagonista absoluto, com a participação livre e filial da pessoa. O ser humano, criado à sua imagem e semelhança, vive uma relação marcada pelo paradoxo permanente da graça e do pecado. O pacto de amor é uma construção permanente, que acontece individualmente e vai sendo renovado cotidianamente pela aliança que tem o seu cume no mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. O acontecimento pascal marca uma qualificação do tempo para a existência cristã. Na progressão do mistério da encarnação, a ressurreição oferta o conteúdo para que a vida do cristão possa abrir-se à passagem dos sinais que se contrapõem ao sentido da vida e da história até a realização última do humano, na sua visão beatífica. O transcurso da condição humana não é mais determinado pelo ocaso e o não senso. O humano não é condenado ao nada; ao vazio e à náusea (cf. Sartre). A sua abertura ao transcendente e, mais propriamente, ao divino pode ser confirmada pela adesão amante e fiel ao mistério da Ressurreição de Jesus Cristo. Com essa confirmação antropológica, vem também a sua vinculação eclesial e cosmológica ao próprio mistério do mundo. À tradição cristã, especialmente àquela católica, é conferido à dimensão cósmica esse influxo de cristo total que é o ponto final de toda a criação (cf. T. de Chardin – Fenômeno Humano; Urs von Balthasar – Liturgia Cósmica).  Nestes autores, só para citar alguns de tradição católica – reconheço que tantos outros podem servir de referência – existe essa preocupação de nos colocar diante destas possibilidades, que desde os padres da Igreja, já estavam presentes no arcabouço teológico da tradição viva da Igreja. Essa percepção nos oferta o vínculo entre a antropologia natural e o sobrenatural como via imprescindível para aprofundarmos como essa presença do divino está integrada também no modo de ser pensada a criação (cf. Jo 1,1-3; Cl 1,15-20).

 

Durante e depois da covid, o mundo clamou por uma resposta ao drama que assolou a humanidade. A pandemia foi tida como o pior mal vivido pela civilização, depois da II guerra mundial (1939-45). É importante que essa relação com outro referencial que trouxe tantos malefícios aos seres humanos seja feita, para que, assim como existiram sinais de esperança, em meio a tantos sofrimentos e destroços, também os visualizemos no nosso momento. Podemos falar de tempos sombrios, assim como foram qualificados aqueles passados; outrossim temos que recordar dos grandes protagonistas da bondade e da compaixão, que fizeram a diferença com suas atitudes e que, por isso, corroboram a existência do bem nas névoas do mal. Num contexto marcado por conflitos bélicos, injustiças sociais, crises climáticas e desafios que ofendem a dignidade dos seres humanos, pensar a ressurreição como conteúdo da nossa fé, passa a ser sinal de esperança para os que se deparam com a presença da ausência do bem.

 

Num contexto de avanços materiais de um lado, onde a criatura quer assumir o lugar do criador, seja na perspectiva teológica, quanto na antropológica, surge o grito que urge pela Esperança. A inconsistência do que “está aí” no presente lança o laço para agarrar o que é sonhado do futuro. No campo teológico, uma obra que delineia esta época é a Teologia da Esperança, do teólogo Jürgen Moltmann. Esta, por sua vez, é uma abordagem que enseja colocar no seu lugar teológico o que também será intento do filósofo, E. Bloch, que tratará desta virtude como princípio condicionado pela razão. A partir destas duas propostas, podemos inferir que a humanidade vive a necessidade da esperança. A questão que precisa ser posta é como a mesma é reconhecida, vivida e testemunhada nos momentos de crise, nos quais cada pessoa está envolvida. Estamos sendo interpelados diariamente a percebê-la. Uma reflexão que visa colocá-la no seu lugar teológico e sintetiza a sua relevância existencial para o cristão de hoje é a carta papa emérito, Bento XVI, a Spe Salvi. O Papa Francisco, nesta mesma linha, está a chamar a Humanidade a viver esta virtude. Muitas outras abordagens estão a nos relançar ao que esta força propulsora da história pode nos ofertar para que não percamos a fé na capacidade humana de fazer e testemunhar o bem.

 

Inseridos neste turbilhão de incertezas, cada um de nós outros, somos evocados a celebrar esta esperança. Recordo-me bem que, em dois mil e dezessete, em audiência concedida pela sua Santidade, o Papa Francisco, ao colégio Pio Brasileiro, o mesmo nos exortava “a ser para o povo brasileiro sinais de esperança”. Cada um de nós, em cada estado de vida, seja cristão ou não, nas diferenças às quais cada um é submetido, como sujeito ou objeto, na cotidianidade entrelaçada de miséria com a misericórdia, pode se tornar benfeitor da, ou agraciado pela esperança. Eu escrevo isto em causa própria; pois fui espectador da morte por alguns dias, vitimado pelo famigerado vírus, àquela época. Graças aos profissionais da saúde e a fé, minha e a dos demais membros do povo de Deus, que tanto rezou por mim, posso hoje pontuar estas linhas, com a certeza de que Deus jamais me abandonou, principalmente nos momentos em que só podia ‘falar com Ele’.

 

Enfim, não podemos tratar a esperança como sinônimo de utopia. Ela é real e tem lugar próprio. Para os que vivem pela fé, ela tem por fonte o próprio Deus, Uno e Trino; para os que não têm fé, ela pode ser encontrada no imediato da vida e ter por causa o ser humano. A Ressurreição de Jesus Cristo é para a humanidade a fonte da esperança. Ela nos leva à confiança na vida plena. Em nossos dias, testemunhar e falar da esperança é uma urgência antropológica e ecológica. O cristianismo tem essa linha de construção sapiencial e integral. O cuidado com a criação é um meio necessário para o cuidado do futuro da própria humanidade. Não permitamos que nos roubem a esperança. Jesus Cristo ressuscitado é a certeza de que somos salvos por ela (cf. Rm 8, 24-25). Assim o seja!

 

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