A hospitalidade da Palavra em Lévinas e o desafio da cultura digital
- pascom9
- 27 de jun.
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Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
A filosofia de Emmanuel Lévinas emerge como um grito profético no século XX, especialmente em face das tragédias resultantes do pensamento totalizante que marcaram a história europeia. Em resposta às formas de opressão que absolutizam o Mesmo e anulam o Outro, Lévinas propõe uma filosofia onde a ética, fundada na alteridade, antecede toda ontologia. Neste horizonte, a linguagem ocupa um lugar central. Não como mero veículo de informação ou sistema de signos, mas como o espaço inaugural onde a transcendência do Outro se manifesta e o dizer trona-se como fulguração da significação.
A filosofia ocidental, segundo Lévinas, construiu-se predominantemente sob o primado da Totalidade, em que o Outro é reduzido ao Mesmo (ao Eu) na tentativa de compreender, dominar, ou neutralizar a diferença. Essa ontologia do ser propõe um saber que se traduz em poder: "Eu penso, logo posso", como escreve Lévinas. Contra esta tradição, ele estabelece uma inversão radical: a ética como filosofia primeira. Antes de qualquer constituição subjetiva do sentido, há o rosto do Outro que me interpela e solicita responsavelmente minha acolhida. O Outro, com seu rosto exposto, rompe com a soberania do Eu e inaugura a possibilidade da justiça.
A linguagem, nesta perspectiva, deixa de ser um instrumento de representação e passa a ser a própria possibilidade do encontro. “O rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso”, afirma Lévinas. No dizer, o sujeito não impõe um sentido previamente constituído, mas se expõe na vulnerabilidade da escuta e da acolhida. A palavra autêntica não visa absorver o Outro, mas mantê-lo em sua exterioridade e transcendência.
Assim, o dizer é fulguração, em que o sentido irrompe como algo que ultrapassa a intencionalidade da consciência, vindo do Outro. Tal significado não é constituído no interior do Eu, mas recebido na relação. O dizer é, pois, hospitalidade; um abrir-se ao que vem do Outro, um oferecer-se ao seu apelo. É esta a verdadeira condição da comunicação, enquanto abertura ao Outro.
O discurso autêntico distingue-se, portanto, do discurso retórico, que procura convencer, persuadir, cooptar e reduzir o Outro ao Mesmo. A retórica não respeita a exterioridade do Outro, mas o reduz a objeto de manipulação. Assim, para Lévinas, a retórica é imoral, pois suprime a transcendência e instala a violência do Mesmo sobre o Outro.
No contexto contemporâneo das mídias digitais e das redes sociais, a palavra sofre uma nova inflexão de sentido. A cultura digital, muitas vezes, intensifica o jogo da retórica com discursos polarizados, cancelamentos, ideologização da linguagem, bolhas de confirmação, discursos de ódio. A palavra torna-se arma, instrumento de disputa, de conquista, de domínio simbólico. Assim, o Outro é frequentemente instrumentalizado, rotulado, silenciado ou expulso do espaço de escuta.
Se a palavra, em Lévinas, é hospitalidade, na cultura digital ela frequentemente se converte em campo de exclusão. A urgência levinasiana é, portanto, extremamente atual, no sentido de que é preciso redescobrir o dizer como abertura à escuta, como responsabilidade pelo Outro, como criação de comunidade e não de trincheiras.
A palavra, para Lévinas, é essencialmente ética porque me compromete com aquele que me fala. Não há palavra verdadeira sem responsabilidade. Diante da proliferação de discursos violentos, de algoritmos que amplificam o Mesmo e reduzem o Outro ao silenciamento, torna-se urgente resgatar o sentido do dizer como fulguração do sentido, como abertura para o Infinito que irrompe no rosto de cada ser humano.
Reaprender a palavra como hospitalidade é, hoje, um gesto revolucionário. É permitir que a linguagem recupere sua vocação originária: ser espaço de encontro, de escuta, de acolhimento, de justiça e de paz.