Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
A mentira é tão antiga quanto a própria comunicação humana, pois o ato de falar implica dizer a verdade ou mentir. Desde os primórdios da filosofia, a verdade e a mentira foram questões centrais no debate ético e moral. Clássicos como Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e Immanuel Kant abordaram a questão de formas distintas, cada um trazendo contribuições valiosas para a compreensão do fenômeno. Hoje, em meio à revolução digital e ao fenômeno das fake news, essas reflexões ganham nova relevância, mostrando-se atuais e necessárias.
Santo Agostinho, em suas obras "Contra a Mentira" e "Sobre a Mentira," é rigoroso ao tratar do tema. Para ele, a mentira é sempre um pecado, pois implica uma falsidade deliberada que corrompe a alma. Agostinho distingue diferentes tipos de mentira, mas mantém que qualquer forma de falsidade é moralmente repreensível. Ele enfatiza a necessidade de aderir à verdade como uma obrigação moral absoluta, independente das consequências.
Santo Tomás de Aquino, na "Suma Teológica" (Secunda Secundae, Tratado sobre a Justiça, Questão 110), aborda a mentira como um pecado que vai contra a justiça e a caridade. Ele classifica as mentiras em três categorias principais: mentiras prejudiciais, mentiras oficiosas e mentiras jocosas (ou piadas). 1. Mentiras Prejudiciais: são ditas com a intenção de causar dano a outra pessoa, seja em sua reputação, bens ou vida. Santo Tomás destaca que essas mentiras são especialmente graves porque têm como objetivo prejudicar deliberadamente o próximo. Ele também inclui mentiras contra Deus, como aquelas que distorcem a verdade da fé, considerando-as ainda mais severas devido ao seu impacto espiritual. 2. Mentiras Oficiosas: são contadas para obter algum benefício ou evitar um dano, como mentir para proteger alguém ou para evitar uma situação desconfortável. Apesar de não serem contadas com a intenção de prejudicar, Santo Tomás ainda as considera moralmente erradas porque vão contra a obrigação de comunicar a verdade. No entanto, ele reconhece que a culpa dessas mentiras é menor do que a das mentiras prejudiciais. 3. Mentiras Jocosas: são ditas para divertir ou entreter, sem a intenção de enganar de forma maliciosa. Embora possam ser consideradas menos graves, pois geralmente não causam dano direto, Santo Tomás as considera moralmente inadequadas por desviar-se da verdade.
Enfim, segundo Santo Tomás, a mentira, independentemente de sua intenção ou gravidade, é sempre moralmente errada porque contraria a natureza racional do ser humano, que é orientada para a verdade. Ele argumenta que as palavras são sinais naturais das ideias, e usar esses sinais para transmitir algo contrário ao que se pensa é uma desordem moral. Pois, só pode mentir quem conhece a verdade e, deliberadamente, mente para enganar ou tirar algum proveito dela. Portanto, mesmo as mentiras com boas intenções não escapam da condenação moral, pois comprometem a verdade, que é essencial para a comunicação humana e a confiança social.
Immanuel Kant, em seu ensaio "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor à Humanidade," é igualmente rigoroso. Para Kant, a veracidade é um dever incondicional, essencial para a base da justiça e dos contratos sociais. Ele argumenta que, mesmo uma mentira dita para evitar um mal maior, como mentir para proteger alguém de um assassino, não é justificada, pois compromete a universalidade do dever moral e a confiança nos contratos sociais.
Com a revolução digital e o advento da internet, o conceito de verdade foi significativamente alterado. A disseminação de fake news exemplifica o que caracteriza a "pós-verdade," onde as emoções e crenças pessoais se sobrepõem aos fatos objetivos. As fake news são frequentemente construídas a partir de fragmentos de verdade, manipulados para reforçar determinadas crenças e ideologias, criando narrativas que visam desinformar e desestabilizar o sistema de verdade compartilhado.
Esse fenômeno apresenta um desafio ético significativo, pois a manipulação da verdade pode levar à desinformação massiva e à polarização social. A cultura digital, ao democratizar a produção e disseminação de informações, deu voz a todos, mas também abriu espaço para a desinformação. A educação para o pensamento crítico e a ética na comunicação são de suma importância para lidar com esses desafios.
As reflexões clássicas de Agostinho, Tomás de Aquino e Kant continuam sendo fundamentais para a compreensão ética sobre a verdade e a mentira. Em tempos de fake news e pós-verdade, é fundamental revisitar esses ensinamentos e aplicá-los ao contexto contemporâneo, promovendo uma cultura baseada na verdade e na responsabilidade na comunicação. A busca pela verdade deve ser um compromisso contínuo, tanto na esfera privada quanto na pública, garantindo que a informação seja usada para o bem comum e para a construção de uma sociedade mais justa e informada.