Padre João Maria, 120 anos de história e devoção
- pascom9
- 23 de out.
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Discurso proferido pelo Prof. José Rodrigues da Silva Filho, presidente da Comissão Histórica do Processo de Beatificação e Canonização do Servo de Deus Padre João Maria Cavalcanti de Brito, por ocasião da Sessão Solene da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, em 16 de outubro de 2025
Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Arcebispo Metropolitano de Natal, Dom João Santos Cardoso,
Reverendíssimo e muito estimado Dom Heitor de Araújo Sales, Arcebispo Emérito de Natal — cuja longeva vida pastoral e intelectual é, por si só, um testemunho luminoso da fé e da cultura do Rio Grande do Norte, e que hoje, com merecido reconhecimento, é homenageado por esta Academia,
Ilustríssimo Presidente desta Casa, Dr. Diógenes da Cunha Lima, poeta guardião das letras e da memória potiguar,
Querido amigo Professor Luís Eduardo Brandão Suassuna, entusiasta incansável da devoção ao Padre João Maria,
Reverendíssimo Monsenhor José Valquimar Nogueira do Nascimento, Vigário Geral da Arquidiocese,
Reverendo Padre Inácio Henrique de Araújo Teixeira, pároco da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, e, por meio deles, saúdo com sincero apreço todos os sacerdotes aqui presentes, Senhoras e senhores acadêmicos, autoridades civis e eclesiásticas, devotos e convidados, saudações.
Nesta ocasião solene, faço também memória e rendo minha sincera gratidão a Pedro Soares de Araújo e Boanerges Soares, bem como aos sacerdotes Monsenhor Eymard L’E. Monteiro, Monsenhor Geraldo Ribeiro de Almeida e Monsenhor Francisco de Assis Pereira, todos in memoriam, cuja dedicação, fé e erudição tanto contribuíram para a preservação da devoção e o avanço da causa do Servo de Deus Padre João Maria. Suas pesquisas, testemunhos e ações pastorais foram pedras vivas na construção desta memória que hoje honramos.
Reunimo-nos hoje para celebrar os 120 anos de falecimento do Padre João Maria Cavalcanti de Brito, o “Anjo da Caridade”, cuja vida permanece como um farol de fé, de serviço e de amor para o povo potiguar.
A trajetória de Padre João Maria se inscreve num dos períodos mais desafiadores da história brasileira. O país atravessava as últimas décadas do Império, os ventos do liberalismo agitavam a sociedade, a Guerra do Paraguai marcou a consolidação do exército brasileiro e as tensões entre Igreja e Estado alcançavam o clero local.
No Rio Grande do Norte, a seca, a pobreza e as epidemias moldavam o cotidiano de um povo resiliente. Na capital, floresciam ideias sobre o progresso e modernização social a partir de movimentos republicanos e positivistas. Nesse cenário, o sacerdote era mais do que o celebrante dos ritos: era mediador, educador, conselheiro e símbolo da presença de Deus na vida pública.
Foi nesse ambiente de transição — entre fé e razão, tradição e modernidade — que surgiu a figura serena e firme do Padre João Maria Cavalcanti de Brito, que uniu a espiritualidade à ação concreta e a firmeza doutrinária à compaixão.
João Maria Cavalcanti de Brito nasceu em 23 de julho de 1848, no lugar de Jardim de Piranhas, então pertencente à Freguesia de Caicó, filho de Amaro Soares de Brito e Anna de Barros, ambos do Seridó. Foi batizado em 14 de julho do mesmo ano, na Capela do Jardim de Piranhas.
Ingressou primeiramente no Seminário de Olinda e, mais tarde, no Seminário da Prainha, em Fortaleza, onde concluiu seus estudos teológicos. Foi ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1871 e iniciou o ministério no Seridó, servindo nas freguesias de Jardim de Piranhas, Flores (atual Florânia), Acari e Santa Luzia do Sabugi, entre 1872 e 1876. De 1878 a 1881, exerceu o cargo de vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Ó, em Papari (atual Nísia Floresta), período, consolidou a imagem de padre diligente, marcado por intensa dedicação pastoral e prudência no trato com as realidades sociais e religiosas de seu tempo.
Em 1873, o vigário titular da Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, Padre Bartolomeu Fagundes, fora afastado pelo bispo de Olinda, Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, devido à sua notória ligação com a Maçonaria. Esse episódio ilustra as profundas disputas entre Igreja e Maçonaria no Rio Grande do Norte, um conflito de ideias e valores que permeava a sociedade natalense.
Mesmo após o afastamento, as tensões permaneceram. Em 1881, o novo vigário, Padre José Hermínio Borges, solicitou permuta com o Padre João Maria, então em Papari, justamente pelas dificuldades em lidar com o ambiente conflituoso da capital. Ao assumir a Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, Padre João Maria demonstrou rara sabedoria pastoral. Fiel à ortodoxia da Igreja e ao espírito de comunhão ensinado por Dom Vital, soube restaurar a paz entre grupos divididos. Sua diplomacia não foi concessão, mas expressão de prudência cristã. Sem abrir mão da doutrina, acolheu com serenidade os que pensavam diferente, transformando um cenário de divisão em oportunidade de reconciliação.
Foi esse equilíbrio — entre firmeza e caridade — que o fez conquistar o respeito de católicos e não católicos, tornando-se símbolo de harmonia e exemplo de sacerdote que une, edifica e pacifica.
Mas sua atuação teve uma transcendência social para além do espaço eclesiástico, preocupado com a dignidade humana em sua integralidade, em 1888, Padre João Maria foi um dos fundadores da Sociedade Abolicionista do Rio Grande do Norte, sendo eleito, a unanimidade, o primeiro presidente da diretoria. Sua presença deu à causa abolicionista um tom profundamente cristão: a liberdade, para ele, não era apenas um direito civil, mas uma exigência evangélica, expressão da dignidade de cada filho de Deus.
A mesma inspiração o levou a criar e dirigir o jornal Oito de Setembro, publicação de orientação católica e formadora da opinião religiosa da cidade. O periódico tinha o objetivo de defender a fé, difundir os ensinamentos da Igreja e combater o anticlericalismo que ganhava força naquele período. Em suas páginas, o leitor encontrava artigos sobre a moral cristã, a vida sacramental, a devoção à Virgem Maria e as orientações do Magistério da Igreja. Era um jornal catequético, que servia como voz da Igreja Católica em Natal, promovendo o ensino da doutrina e a unidade do povo em torno dos valores do Evangelho.
Com o Oito de Setembro, Padre João Maria fez da imprensa um instrumento pastoral, reafirmando o papel da Igreja na formação das consciências e na educação da fé — num tempo em que o jornal se tornava o púlpito mais eficaz para evangelizar e instruir.
O zelo pastoral de Padre João Maria também se manifestou na área da educação. Ele acreditava que o progresso material de Natal só seria verdadeiro se acompanhado pela formação espiritual e intelectual de seu povo. Por isso, empenhou-se em fortalecer a educação católica, estimulando a criação de escolas paroquiais e apoiando, em 1903, a instalação do Colégio Diocesano de Natal, instituição que se tornaria referência na formação da juventude cristã potiguar.
Durante a seca de 1889, milhares de retirantes chegaram à capital famintos. Padre João Maria abriu as portas do Consistório da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, onde residia, organizando a distribuição de alimentos e socorros. Chegava a doar a própria rede que dormia, passado a dormir no chão, ou distribuir a alguma viúva que lhe procurava um corte de tecido preto que havia ganhado para uma batina nova, e continuava a seguir com sua batina gasta. Tais fatos fez dele um verdadeiro pai para os desvalidos.
Poucos anos depois, sua figura se destacou novamente durante a epidemia de varíola que assolou Natal, principalmente no início de 1905. Quando muitos fugiam por medo do contágio, Padre João Maria permaneceu na cidade, cuidando dos enfermos e levando consolo espiritual aos moribundos. Ele visitava os enfermos, levava-lhe alimentos, remédios, conforto, administrava os sacramentos aos agonizantes e providenciava enterros dignos aos falecidos, quando quase ninguém se atrevia a fazê-lo.Esse período consolidou a já existente fama de santidade na memória do povo, que passou a vê-lo como o “anjo da caridade”. Sua coragem em meio à epidemia, enraizou sua figura no coração do povo, transformando-o em um símbolo de esperança, no amor vence o medo e na fé não se retrai diante da dor.
Em 1905, já debilitado por uma diabetes severa, continuava a atender confissões, celebrar e visitar os doentes. Foi levado ao Alto do Juruá, onde seus amigos buscavam resguardá-lo do agravamento da doença. Mesmo em sofrimento, repetia: “Deixem-me ver o meu povo.” No amanhecer de 16 de outubro de 1905, aos 57 anos, partiu serenamente para a Casa do Pai, vencido não pela enfermidade, mas pelo amor que consumiu sua vida inteira.
A notícia de sua morte abalou profundamente a cidade. Milhares de pessoas de todas as classes sociais compareceram as últimas homenagem. Dentre tantas homenagens, o poema Uma Lágrima, de Ivo Filho, recitado à beira do túmulo do padre, expressa o profundo lamento pelo falecimento do padre, destacando que ele permanecerá “no coração do povo”. Essa expressão de sentimento reflete a identificação que os fiéis tinham com o padre João Maria, cujo trabalho pastoral estava intimamente ligado à vida cotidiana e aos desafios enfrentados pela comunidade. Até mesmo a Igreja Presbiteriana de Natal, através de seu periódico: “O Século”, manifestou pesar:
“Ao passo que não tivemos a honra da sua amizade, e não obstante sermos a outra crença religiosa, não nos podemos furtar do privilégio de prestar a nossa homenagem à memória do falecido... era um espírito caridoso, de caráter probo, e, quanto ao que sabemos, era de uma vida imaculada. Testemunha da sua dedicação aos doentes em mais de uma epidemia de varíola.”.”
Desde então, a devoção ao Padre João Maria se consolidou. Seu túmulo, no Cemitério do Alecrim, tornou-se local de oração e agradecimentos por graças alcançadas. A Praça Padre João Maria, no centro da cidade, é hoje símbolo da fé do povo natalense, e no Alto do Juruá, onde faleceu, ergue-se a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, espaço de devoção e gratidão.
O processo de beatificação e canonização, atualmente em fase romana, reúne provas da constância de suas virtudes e da santidade reconhecida pelo povo.
Como recorda o Papa Leão XIV, na Exortação Apostólica Dilexi Te:
“Nenhuma expressão de carinho, nem mesmo a menor delas, será esquecida, especialmente se dirigida a quem se encontra na dor, sozinho, necessitado, como estava o Senhor naquela hora.” (Dilexi Te, n. 4).
Essas palavras refletem o legado de Padre João Maria: o amor transformado em gesto, a fé encarnada no serviço e a santidade vivida no cotidiano.
Senhoras e senhores,
O Padre João Maria Cavalcanti de Brito foi o pastor e o amigo do povo, o educador das consciências, o defensor da fé e o rosto da caridade. Sua vida é o retrato mais puro de uma Igreja que serve, consola e ensina.
Agradeço à Igreja de Natal, guardiã dessa memória; à Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, por unir fé e cultura nesta homenagem; ao Dr. Diógenes da Cunha Lima, ao Arcebispo Dom João Santos Cardoso, ao Postulador Frei Jociel Gomes, ao Vice-Postulador Cônego José Mário de Medeiros, e às professoras Margarida Dias e Irmã Vilma Lúcia, pelo estudo e dedicação à causa; e reitero minhas homenagem, ao Arcebispo Emérito Dom Heitor de Araújo Sales.
Que o Servo de Deus Padre João Maria, o “Anjo da Caridade”, continue a inspirar o nosso tempo, lembrando-nos de que a verdadeira grandeza está em amar e servir.
Muito obrigado.








