Por Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Mirassol - Natal
A teologia conciliar e pós-conciliar teve e tem buscado situar a pessoa do presbítero, com sua missão, no mundo moderno e pós-moderno. Essa preocupação teve reflexos importantes em muitos lugares da catolicidade, especialmente para nós outros, aqui na América Latina. Pensemos na recepção do Concilio com as quatro Conferências pós-conciliar, aqui no lado sul do mundo. Esse itinerário do magistério conciliar e latino americano é um tesouro que alguns ‘retrópicos’ insistem em negar, por má fé, ignorância ou problemas existenciais. A teologia do presbítero, que é a assumida pelo Concílio, mesmo não contrapondo-se à do sacerdote, difere numa questão aparentemente simples, mas que traz consequências importantíssimas para sua ‘identidade’ e existência no mundo, exigindo dele novas formas, perspectivas e modos de atuação.
A partir da leitura e hermenêutica conjuntas dos documentos conciliares, passando especialmente pelas suas quatro principais referências, a saber – Gaudium et Spes, Lumen Gentium, Dei Verbum e Sacrossantum Concilium – chego a afirmar, e espero não ser mal interpretado, que na existência presbiteral o que os presbíteros menos devem fazer é preocupar-se com tantas celebrações. Todas elas, mesmo que tendo o seu lugar teológico e prático indispensável e insubstituível na vida e missão presbiterais devem ser atividades fim, e não meios do jeito de ser ‘presbítero sacerdote, e não sacerdote presbítero’. É comum, nas várias ordenações e pregações das quais participamos, quando são feitas menções e elucubrações sobre a missão, a pessoa e a identidade presbiterais, o foco está direcionado à figura e à espiritualidade do sacerdote como homem do culto, dos sacramentos e da liturgia. As observações e falas oníricas de alguns são voltadas a um aspecto da teologia que remete mais às prerrogativas da dogmática trindentina, do que da eclesiologia do Vaticano II.
De modo direto, o Vaticano II quando fala do presbítero, como “ministro-servidor”, afirma que este deve ser: ministro da palavra de Deus, dos sacramentos e da pastoral (cf. Presbyterorum Ordinis, 4-6). Vale portar alguns recortes dos ensinamentos conciliares:
“O Povo de Deus é reunido antes de mais pela palavra de Deus vivo, que é justíssimo esperar receber da boca dos sacerdotes. Com efeito, como ninguém se pode salvar se antes não tiver acreditado, os presbíteros, como cooperadores dos Bispos, têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus, para que, realizando o mandato do Senhor: ‘Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a todas as, criaturas’ (Mc. 16,15), constituam e aumentem o Povo de Deus. Com efeito, é pela palavra da salvação que a fé é suscitada no coração dos infiéis e alimentada no coração dos fiéis; e é mercê da fé que tem início e se desenvolve a assembleia dos crentes, segundo aquele dito do Apóstolo: ‘a fé vem pelo ouvido, o ouvido, porém, pela palavra de Cristo’ (Rom. 10,17). Por isso, os presbíteros são devedores de todos, para comunicarem a todos a verdade do Evangelho, de que gozam no Senhor”. Prosseguimos: “Deus, que é o único santo e santificação, quis unir a si, como companheiros e colaboradores, homens que servissem humildemente a obra da santificação. Donde vem que os presbíteros são consagrados por Deus, por meio do ministério dos Bispos, para que, feitos de modo especial participantes do sacerdócio de Cristo, sejam na celebração sagrada ministros d'Aquele que na Liturgia exerce perenemente o seu ofício sacerdotal a nosso favor (...) Os restantes sacramentos, porém, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado; estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo; assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas. Por isso, a Eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização, enquanto os catecúmenos são pouco a pouco introduzidos na participação da Eucaristia, e os fiéis, já assinalados pelo sagrado Batismo e pela Confirmação, são plenamente inseridos no corpo de Cristo pela recepção da Eucaristia”. Por último, mas não menos importante: “Exercendo, com a autoridade que lhes toca, o múnus de Cristo cabeça e pastor, os presbíteros reúnem, em nome do Bispo, a família de Deus, como fraternidade bem unida, e por Cristo, no Espírito, levam-na a Deus Pai. Para exercer este ministério, como também para os restantes ofícios sacerdotais, é conferido o poder espiritual, que é dado para edificação. Na edificação da Igreja, porém, os presbíteros devem tratar com todos com grande humanidade, a exemplo do Senhor. Nem devem proceder para com eles segundo o agrado dos homens, mas segundo as exigências da doutrina e da vida cristãs, ensinando-os e admoestando-os como filhos caríssimos, de harmonia com as palavras do Apóstolo: ‘Insiste a tempo e fora de tempo, repreende, suplica, admoesta com toda a paciência e doutrina (2 Tim. 4,2)”.
Essa ordem tem um propósito. Ela nos oferece indicações configurativas e performáticas. O presbítero no Concílio é apresentado fundamentalmente como ‘ministro da palavra, ou ouvinte da Palavra para que possa ser seu anunciador. Aqui há uma teologia de Karl Rahner, que dentro do seu esquema transcendental-existencial afirma que “o sacerdote continuando homem, permanecendo cristão como somos todos, começa a anunciar-vos a palavra de Deus por ordem de Deus. (...) como crente e impressionado, ele tem consciência de que em sua vida deseja e pode dirigir-vos pela e para a palavra de Deus. (...) Ele vem a vós porque Deus lhe disse que deve comunicar a palavra divina” (cf. Novo Sacerdócio, pág. 28-29). É pela palavra que a conversão cristã acontece no primeiro momento. Isso tanto é pressuposto para o discipulado e a missão do presbítero, como outrossim para os demais membros da Igreja.
Na diretiva dada pelo Concílio a dimensão profética-presbiteral é sobreposta à levítica-sacerdotal. Aqui uma outra mudança categorial que não pode ser esquecida. No anúncio, oportuno e em todos os lugares, o presbítero é chamado e enviado ao mundo. Todas as realidades passam a ser espaços de missão e de evangelização para ele. O templo não é o único recanto, aliás lá, será o último lugar e de lá é retomado continuamente o nosso encargo na sociedade e nas várias periferias geográficas e existenciais. A busca de sinais e atitudes de muitos ‘novos sacerdotes’, marcados mentalmente por uma ‘teologia do pano, da burocracia e do carreirismo’, tem gerado muita perplexidade do porquê de tais preocupações. A teologia de sacristia voltou a ser vista e assumida, mesmo que inconscientemente e sem sólidas fundamentações, como uma conveniente forma de viver o sacerdócio no contemporâneo, em muitas Igrejas Particulares e casas de formação. É um casulo eclesiológico que desabrocha e espalha muitas flores por onde passa. Há uma embriaguez com as aparências e com as formações de bolhas que distanciam cada vez mais os presbíteros da inserção no mundo, e para o mesmo, sem caírem no mundanismo espiritual e existencial.
A intenção dialógica do Concílio teve muito presente a abertura a todas as novidades dos tempos modernos e tempos sucessivos. Basta que leiamos a Gaudium et Spes (Alegria e Esperança). Essa primeira interação com as realidades acontece pelo anúncio e testemunho da Palavra. Não é pela via sacramental. Esta última é referencial para quem já está dentro, e não ‘ainda’ para quem está fora da Igreja. Não é à toa que o Papa Francisco insiste numa “Igreja em Saída”. Essa impostação – pré-conciliar – tira de todos nós, presbíteros, a convicção de que precisamos ser “homens de fronteiras”, como já escrevi em outra ocasião. Não somos homens só da Igreja. Essa inserção foi sendo constituída processualmente. Somos antes de tudo, sujeitos e, porque não lembrar objetos, do anúncio do Evangelho no mundo (cf. Mc 16, 15-16; Mt 28,18-20). Vivemos como que iludidos com o pouco que vemos. Parece que não nos situamos historicamente. Perdemos a capacidade de discernimento, porque algumas atividades que nos fortalecem não fazem parte das nossas vidas: necessitamos cuidar de nós mesmos e dos outros, com a formação permanente, tendo como referenciais mistagógicos, teóricos e práticos, o que nos é oferecido pela sabedoria e tradição vivas da Igreja.
A nossa pergunta sobre o nosso lugar no mundo deve ser uma constante, assim como o foi para os presbíteros que viveram os movimentos da história no pós-concílio. Se para eles, a saída do fim da modernidade para o início do pós-moderno, principalmente com os avanços das revoluções portadas pelos meios de comunicação, gerou neles tantas crises – e por isso muitos deixaram o exercício do ministério – nós outros estamos passando por uma nova mudança de época, onde o pós-humanismo, o pós-cristianismo, as novas tecnologias, as biotecnologias, as questões humanitárias e ecológicas, e outros fenômenos transitórios, nos interpelam ao que somos chamados a ser neste “admirável mundo novo” (cf. A. Huxley). Colocar a cabeça num buraco, ou voltar para a caverna (cf. Platão, A República), não pode ser a melhor estratégia, caso consideremos, livre e conscientemente, a nossa sinfônica missão evangelizadora e eclesial.
Retornemos, ainda, o que nos ensina o Concílio (cf. Presbyterorum Ordinis, 3) quando assevera sobre a relação do presbítero com o mundo e nele:
“Os presbíteros do Novo Testamento, em virtude da vocação e ordenação, de algum modo são segregados dentro do Povo de Deus, não para serem separados dele ou do qualquer homem, mas para se consagrarem totalmente à obra para que Deus os chama. Não poderiam ser ministros de Cristo se não fossem testemunhas e dispensadores duma vida diferente da terrena, e nem pode riam servir os homens se permanecessem alheios à sua vida e às suas situações. O seu próprio ministério exige, por um título especial, que não se conformem a este mundo; mas exige também que vivam neste mundo entre os homens e, como bons pastores, conheçam as suas ovelhas e procurem trazer aquelas que não pertencem a este redil, para que também elas ouçam a voz de Cristo e haja um só rebanho e um só pastor. Para o conseguirem, muito importam as virtudes que justamente se apreciam no convívio humano, como são a bondade, a sinceridade, a fortaleza de alma e a constância, o cuidado assíduo da justiça, a delicadeza, e outras que o Apóstolo Paulo recomenda quando diz: ‘Tudo quanto é verdadeiro, tudo quanto é puro, tudo quanto é justo, tudo quanto é santo, tudo quanto é amável, tudo quanto é de bom nome, toda a virtude, todo o louvor da disciplina, tudo isso pensai’ (Fil. 4,8)”.
Tenhamos docilidade às orientações ‘pastorais’ dos padres conciliares aos presbíteros. Deve chamar-nos à atenção a ênfase dada ao presbítero a partir do que é dito e sintetizado na teologia do Novo Testamento, que sem dúvida, e tendo como base também toda a construção do sacerdócio da carta aos hebreus, é considerada numa perspectiva integral e que coloca as balizas para que pensemos a identidade do presbítero com seus três múnus, no ensinar, no santificar e no governar, como o Ungido de Deus e o Bom Pastor, que anuncia o Reino dos Céus e doa a Vida por todos por aqueles que lhes são confiados (cf. Mc 1,15; Mt 4,12-17; Lc 4, 14-15; Jo 10, 11).
O teólogo Edward Schillebeeckx, na sua obra (cf. “Por uma Igreja mais Humana”, na terceira seção, pág. 267-286) apresenta uma narrativa consistente sobre a “imagem moderna do Padre” e as reformas levadas a termo pelo Vaticano II. Nestas páginas, o autor faz uma análise que confirma todos os elementos que hora são assinalados neste ensaio. O sacerdote do pré-concílio era por excelência o homem do culto. Devia estar o quanto possível ‘distante’ da comunidade, sem inserção continuada com a dinâmica própria da vida do seu povo. Os elementos sacerdotais do Antigo Testamento, alicerçadas pela teologia monástica até as definições de Trento (1545-1563) foram constituintes. A base desta “espiritualidade sacerdotal” moderna é o estado de graça sacerdotal. É essencialmente um estado sacerdotal. O sacerdócio não é tanto um ministério quanto um estado, baseado na atividade cultual (cf. pág. 269). Ele afirma que o Vaticano II “fez uma primeira tentativa, mesmo que ainda hesitante; com efeito, tratou-se de um compromisso; de um lado, ele enfatizou a imensa riqueza do carisma do batismo no Espírito e, do outro, descreveu o ministério não somente em termos sacerdotais, mas também proféticos e pastorais: na realidade, o ministério inclui e supõe direção da comunidade (função pastoral), culto litúrgico (função sacerdotal) e proclamação do evangelho (função profética)” (cf. pág. 279).
Por fim, uma atenção à formação permanente e à inquietação dos presbíteros de hoje e do futuro acerca de tais dilemas torna-se cada vez mais necessária e assumida por todos os membros da Igreja. Num mundo marcado pelo secularismo e indiferentismo, as estruturas eclesiais, com seus respectivos responsáveis, em espírito sinodal, acompanhando e estando em comunhão com o magistério da eclesiástico, na pessoa do Santo Padre, o Papa Francisco, que tanto tem insistido sobre a pessoa do presbítero como homem da “proximidade e do discernimento dos sinais dos tempos”, com os demais sucessores dos apóstolos, e atentos ao senso da fé do povo santo de Deus, temos que rezar e refletir sobre essas questões tão importantes e desafiadoras para a vida da Igreja e da sociedade como um todo, já que o presbítero é ungido para anunciar o Evangelho no mundo e ao mundo. Assim o seja!
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