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A Pastoral Urbana e os desafios emergentes


Por Pe. Matias Soares

Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conjunto Mirassol - Natal


O Papa Francisco tem orientado que a nossa pastoral se volte às periferias geográficas e existenciais. O mundo vive uma transformação que nos faz estar inseridos numa “época de mudanças e numa mudança de época”. Podemos tomar por referência histórica a Revolução Industrial (Séc. XIX). O êxodo rural causado pela necessidade de trabalhadores nas indústrias será fator determinante de ebulição dos estilos de vida e reviravoltas sociais, tanto positiva, quanto negativamente, nos ambientes das grandes cidades. Desafios emergentes começam a surgir. Necessidades que fazem com que pensadores como Karl Marx lance o Manifesto Comunista (1848). Os direitos sociais começam a ser violentados e a dignidade da pessoa humana é afrontada nas suas necessidades básicas. A Igreja assume a defesa dos trabalhadores, com uma visão antropológica diversa do historicismo marxista, com a carta programática da Doutrina Social da Igreja – A Rerum Novarum – do Papa Leão XIII (1891). No método, não é a luta de classes, nem a superação do outro, com sua propriedade privada que devem ser implementados, mas o respeito à dignidade de cada ser humano, que com sua propriedade privada, não pode esquecer a justiça social e o bem comum.

A problemática da pastoral urbana, que é um ‘estilo de ser Igreja na cultura urbana, nas cidades com suas estruturas arquitetônicas e geografias próprias’, e nos nossos tempos com todas as reviravoltas subjetivas e existências aprofundadas pelas mídias sociais, é um novo jeito de ser igreja que exige ‘conversão pastoral’ a fim de que possamos promover novos métodos de evangelizar. A cultura urbana transcende os espaços físicos das cidades. Com o poder dos meios de comunicação, ela invade todos os ambientes. No desenvolvimento histórico das civilizações, sempre aprendemos sobre o sentido e o significado das cidades, com suas formas e características próprias; mas, é com a modernidade, com seus avanços tecnocráticos e econômicos, que teremos o fervilhar das emergências sociais que vão dos centros às periferias e destas aos centros. Na atualidade, cerca de oitenta e cinco por cento da população mundial habitam as cidades. Não há como não considerar esse fator social no processo de evangelização. Esse tem desdobramentos sociais (cf. PP Fco. EG. Cap. IV) que nos interpelam e nos fazem pensar que precisamos ‘ser pastoral no mundo urbano’, com atitudes de ousadia missionária, indo ao encontro de todos. Temos que ser uma ‘Igreja em Saída’, com capacidade de escuta, acolhimento e radicados na lógica do Evangelho, tendo nas palavras e ações de Jesus Cristo a bússola para a conversão ao ‘estado permanente de missão’ de toda a Igreja.

A pastoral nos espaços e mentalidades urbanizadas necessita de uma teologia que nos torne cada vez mais conscientes de que “Deus habita as cidades” (cf. Sl 47,9; DAp 514), porque quem as constituem são as pessoas criadas à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Já no período clássico, existia uma teologia civil, que era aquela que “tratava das divindades tutelares, as que protegiam a cidade, e mais amplamente a ‘romanitas’” (cf. S. Agostinho, in L. Ferry. A tentação do cristianismo, pág. 19). Desde sempre, “os deuses guardavam a cidade! Uma cidade que aos poucos se estendia até os confins do mundo: ‘Roma, tu que que fizeste uma cidade do que outrora foi o universo...’” (Rutilius, in idem). O cristianismo assumindo essas duas tradições, tem a pretensão de assumir a cidade como esse ‘lugar teológico’ (cf. Ap 21, 2-4). A cidade de Deus será o mundo. O cristão é o novo cidadão no mundo, sem ser do mundo, com seus vícios e desordens (cf. Carta a Diogneto, 5,5; S. Agostinho, Cidade de Deus). O caminho e o fim de toda e qualquer pastoral, seguindo esse fio da história, é o ser humano que, como pessoa e estando na cidade, tem desejo da verdade de Deus (cf. S. Agostinho. Conf. I,1,1).

Essa cidade da ‘Era Secular’ (cf. Harvey Cox), principalmente a do pós-guerra (1939-1945), com seus sinais de fracasso da condição humana, com sua razão instrumental e mecanicista, continua a jogar com uma construção civilizatória que aposta no contínuo abandono de Deus. Estamos a viver numa Era pós-teísta. Mas, marcada pela crise de sentido, individualismo e vazios existenciais, a ‘fome’ dos seres humanos pelo divino é interior e profunda. Ela continua a intrigar o Eu-profundo. Mesmo sendo massificado pelo modo de estar nas cidades, esse anseio pela força do divino permanece e aparece travestido por buscas espiritualistas com muitas faces e perspectivas. Basta que percebamos a quantidade de sinais do religioso nas arquiteturas urbanas. Contudo, o divino não determina mais os sinais e construções civis, como outrora no período pré-moderno. No contemporâneo, os espaços são assumidos pela lógica do consumo. Os shoppings, as lojas, os supermercados e as indústrias são os novos lugares do trabalho, do bem-estar social, dos sinais de estratificação urbana, de lazer, de divertimentos e de permanente mobilidade. No aspecto artístico, assim, como no passado existiam as motivações econômicas e políticas do teatro grego e do pão e circo da Roma antiga, também nessa sociedade urbanizada, os espetáculos ocuparão seu lugar no ordenamento antropológico, que não pode ser indiferente à hermenêutica dos sinais dos tempos feita pela Igreja e o seu modo de ser nas cidades (cf. G. Depord). É nessa convulsão social e sistêmica que somos intimados a pensar a urgência de uma pastoral no mundo e na cultura urbana que possa dar respostas atualizadas aos grandes questionamentos deste ser humano que está vivendo essa dinâmica frenética e de cansaço nos nossos dias.

Sobre os grandes desafios emergentes, posso mencionar alguns, dentre tantos outros, a saber: a clise climática, a violência, as drogas, os moradores em situação de rua, as pessoas LGBTQIA+, as juventudes, os presídios, os hospitais, as favelas, o desemprego, o analfabetismo, as estruturas físicas excludentes, novas situações familiares, o mundo da cultura – universidades, escolas e ambientes artísticos – e assim sucessivamente. Há que ser observado que, dentro das grandes cidades, a maior parte dessas situações de exclusão está nas periferias geográficas. É gritante e, sem dúvida, deveria ser escandaloso para cada ser humano o cenário de pobreza existente nestas áreas. Um olhar sobre as cidades tem que nos colocar em prontidão para que possamos ser uma presença evangélica, testemunhal, profética e, deste modo, eclesial, nestas áreas de risco e sinais de injustiças. A proposta de Jesus Cristo sobre a realização do Reino de Deus, na existência das pessoas e na história, tem nas realidades suburbanas um amplo horizonte e urgências de superação.

Para que a pastoral urbana tenha lugar no que a Igreja é chamada a testemunhar em nossos dias, o próprio conceito e ideia sobre a missão da Igreja neste momento em que novas construções epistemológicas estão sendo objeto de dubiedades futuras, como é o caso da temática sobre a ‘Inteligência Artificial’ (IA). No dinamismo da ação missionária, mais uma vez, temos que nos lançar nessas linhas de debate, já que na ordem sistêmica da cidade, esses ‘avatás’ chegam com muita velocidade nos espaços de convivência de quem está nos grandes centros e periferias, realidades de fronteira e outros ambientes culturais. A Igreja, em muitos contextos, tem dificuldades de encarar esses desafios; contudo; o foco no que é humano, a partir da pessoa de Jesus Cristo, é o caminho a ser trilhado sempre; “O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção”(cf. J. Paulo II. RH, 14). Nesses contextos urbanos, que considerados a partir do referencial cultural e do olhar atento de uma ética social cristã, com seus princípios facilitadores para uma leitura dos sinais dos tempos, a teologia pastoral é chamada a discernir e a promover o anúncio do evangelho, indo ao encontro de todos os que estão em situações de abandono, tanto espiritual, quanto social. Assim o seja!

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