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A insuficiência do ser padre


Por Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal

A teologia contemporânea avançou no modo de pensar quem é Deus, com seus predicativos e possibilidades de manifestação na história. Essa constatação precisou ganhar corpo no pós-guerra (1939-1945). Essa formalidade foi sendo construída gradativamente, principalmente a partir dos fenômenos constitutivos da modernidade, especialmente no concernente à centralidade do sujeito como medida do conhecimento. Com a reviravolta copernicana, radicalizada por Kant, com a “Crítica da Razão Pura”, e levada a termo na sua obra a “Religião nos Limites da Razão”, quando o filósofo ironicamente afirma “que o mundo vai de mal a pior é uma queixa tão velha como a história, ou mesmo como a velha arte poética, tão velha quanto a mais velha entre todas as poesias, a religião dos sacerdotes”, a modernidade desmistificou o sagrado, tendo como substituto o fundamento a materialização da subjetividade na técnica e no secularismo cultural. Com isso, os elementos da religião são também ‘aprisionados’ nos cenários intersubjetivos e individuais. Há a ampliação do desencanto com as realidades do sagrado e, às vezes, até a sua violência e desrespeito.


A Igreja entendeu essa transformação e as reviravoltas antropológicas que acompanham essas novas situações. A Igreja reconheceu essa centralidade da pessoa com sua autonomia e liberdade esclarecida. O Concílio Vaticano II é a prova dessa “hermenêutica dos sinais dos tempos” levada a termo pelos protagonistas do grande evento eclesial do século XX, com as referências teológicas da genuína “tradição viva” da Igreja e os novos paradigmas epistemológicos da modernidade. Sua recepção ainda é objeto de reflexões dos teólogos contemporâneos, que têm um olhar atento ao presente, com preocupações futuras. Os vários contornos vividos pelo mundo e pela Igreja neste final de século e início do novo milênio nos colocam em estado de prontidão constante. A ideia de crise é o que será tido como fenômeno transversal em todas as ordens sistêmicas dos novos tempos. A “época de transição” descrita por J. Habermas, assumida pela Igreja com a alocução de que vivemos “uma época de mudanças e uma mudança de época”, tem sido o ponto a partir do qual convencionou-se falar em hipermodernidade, pós-modernidade, ou ainda modernidade tardia.


Neste contexto, coloca-se a figura do ‘presbítero’ com sua missão e questionamentos identitários. Se antes do Concílio era fácil o reconhecimento de quem era o sacerdote, como homem do culto e do sacrifício, nos ventos modernos essas prerrogativas se tornaram susceptíveis de muitas hermenêuticas. É central a busca por uma “justa hermenêutica” (cf. Bento XVI). Acerca deste percurso, em outro texto, já esbocei algumas conjecturas e preocupações, às quais recomendo para ulteriores debates e reflexões, (cf. https://www.arquidiocesedenatal.org.br/post/o-presb%C3%ADtero-no-mundo) a serem pesquisadas. Nas várias exposições, a preocupação tem como foco de atenção o aprofundamento acerca da identidade do presbítero, no pré e pós Vaticano II. Os documentos conciliares precisam ser estudados por cada um de nós, como também feita uma relação com a história eclesial e suas muitas maneiras de tornar experiencial a mesma e universal verdade, que a pessoa de Jesus Cristo.


A teologia do ministério ordenado passa pela conscientização do mistério da vida integral de Jesus Cristo. Tendo presente alguns pontos centrais dos evangelhos faço a integração cristológica entre a humanidade e a divindade do Senhor, tomando o pressuposto da sua missão em anunciar e implantar o Reino de Deus (cf. Mc 1,14-15; Mt 4,17 e Lc 4,14), como também de redimir a humanidade pelo mistério da sua Paixão, Morte e Ressurreição (cf. Jo 18-20). Nas minhas leituras pessoais, sempre tenho presente a obra do teólogo ítalo-germânico, Romano Guardini, cujo título é “O Senhor”. É com a pessoa de Jesus que somos chamados a fazer uma caminhada permanente de identificação da nossa própria missão. É questão de encontro, é processo vital, que faz da pessoa do presbítero um ser em estado permanente de conversão. Não podemos esquecer o que é admoestado pelo apóstolo Pedro que exortava os presbíteros do seguinte modo: “Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, cuidando dele, não como por coação, mas de livre vontade, como Deus o quer, nem por torpe ganância, mas por devoção, nem como senhores daqueles que vos couberam por sorte, mas, antes, como modelos do rebanho” (cf. 1 Pd 5, 2-3). Esse ensinamento deve gerar em nós uma profunda inquietação acerca do ministério presbiteral ao qual cada um de nós é chamado a testemunhar. A dimensão ética não pode relativizada. A integração da nossa humanidade não pode ser relaxada. Se as estruturas e responsáveis eclesiásticos não fazem, cada um é evocado a ser protagonista do seu próprio cuidado.


Dentro dessa dinâmica existencial há que ser colocada a antropologia integral do presbítero. Os pensadores que tiveram influência nas construções basilares do Concílio e, consequentemente, na sua antropologia (cf. GS, 22), a saber: – K. Rahner, Urs Von Balthasar, H. De Lubac, J. Maritain – trouxeram a atualização das dimensões do “natural e sobrenatural”, seguindo a tradição tomista, que sintetiza a teologia dos santos padres com a filosofia grega, mais especificamente, neste aspecto, a aristotélica. A teologia sobre a pessoa do presbítero não pode deixar de levar em consideração esse “humanismo integral’ que está sub-reptício ao que será ensinado sobre a figura do presbítero no Concílio e sua importância para o que virá depois sobre a vida destes ministros da palavra, dos sacramentos e da pastoral (cf. PO, 4-6), como também na própria concepção de Igreja como realidade humana e divina. Assim é descrita essa condição nos textos do próprio Concílio quando afirma, que “a sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino. Apresenta por esta razão uma grande analogia com o mistério do Verbo encarnado. Pois, assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo (cf. LG, 8)”. Vejamos que os pressupostos antropológicos nos oferecem a base para compreendermos também a identidade da Igreja e, como a partir desta, a mesma é chamada a ser e estar no mundo.


Nós, presbíteros, não podemos renegar essa perspectiva. A preocupação de elevar a dimensão sacerdotal, na ênfase dada mais ao aspecto sagrado, mas sem sacrifícios e conversão pessoal, tem deixado lacunas na dimensão profética e testemunhal da existência presbiteral. A cristologia contemporânea há construções teóricas que justificam essa última atenção, na consideração do aspecto humano de Jesus Cristo (cf. https://www.laciviltacattolica.es/2022/09/16/la-debilidad-de-jesucristo/?fbclid), com sua fragilidade e obediência filial, especialmente na sua kenosis (cf. Fl 2, 5-11). Os estilos carregados de um tradicionalismo pré-moderno, sem atenção às inovações pastorais e dialógicas do Concílio, estão tornando-se lugar comum nas aparências e, por trás destas, nas mentalidades de muitos sacerdotes dos nossos dias, fugindo das questões evangélicas e eclesiais que o mundo contemporâneo, marcado por desafios cada vez mais exigentes nos avanços pós-humanísticos, pós-secular e pós-cristãos, nos apresenta.


Diante de tudo isso, está a urgência de ser assumida um estilo de vida marcado mais pelo testemunho e o profetismo, que exige uma consciência da realidade que nos circunda, do que com a busca alienada de autoafirmação e vivência infantilizada do ministério presbiteral. A antropologia integral e integrada, que pressupõe uma natureza humana, que é receptiva da graça e aberta ao transcendente deve ser trabalhada na própria dinâmica formativa e levada à realização no jeito de ser presbítero no contemporâneo. A tradição cristã sempre foi muito atenta a essa relação, que nos nossos dias está sendo deixada de lado. Existe um problema humano, que não está sendo cuidado, não só durante a formação seminarística, como também tem sido relaxada durante toda a vida dos presbíteros. A ideia de que a ordenação deixa o consagrado acabado e ‘pronto para celebrar sacramentos’ pode ser considerado como um fenômeno que diz como as concepções teológicas de muitos estão superadas e até fazendo mal à missão da Igreja no mundo atual.


O que urge, depois destas premissas, é que está sendo ‘insuficiente ser padre’, se antes não se dar testemunho cristão e, outrossim, de humanidade reconciliadora consigo e com os outros. A vida presbiteral não pode continuar a ser acolhida como ‘status ou refúgio de problemas existenciais mal resolvidos’, com carreirismos e falta de encantamento com a beleza do evangelho e a missão de Jesus Cristo. Os seminários, com suas estruturas obsoletas, não estão conseguindo perfurar essas bolhas da subjetividade contemporânea, e a própria Igreja tem sido muita prejudicada por causas destes problemas. Uma reviravolta na promoção vocacional deve ser buscada, começando pela própria aplicação da proposta da sinodalidade no processo formativo. Hoje, os fiéis leigos têm que estar envolvidos na organização dos ‘planos de formação’, tanto nos seminários, quanto nos presbitérios das Igrejas Particulares, já que são eles os mais afetados pelas falhas no modo de ser presbítero. O clericalismo ainda é muito forte. Os ‘esquemas’ de proteção e acobertamentos de desvios de conduta são incubadores de variadíssimos problemas.


Enfim, a questão é complexa e, por isso, precisa ser abordada com seriedade. É o bem do povo fiel de Deus que está em jogo, e ainda dos próprios ministros ordenados. Uma concepção integral do humano é que oferecerá as bases para uma formação integral do presbítero, que deve acontecer em todas as fases de vida da pessoa. O povo de Deus é chamado, mais do que nunca, a fazer parte do processo de discernimento e formação de todos nós, que estamos vivendo esse estado de vida. A responsabilidade cabe a todos; pois não é suficiente ser padre, é fundamental ser humano, sendo cristão para ser sando, e depois ser presbítero sacerdote e sacerdote presbítero. Assim o seja!

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