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Pseudoconservadorismo na Igreja


Pe. Matias Soares

Mestre em Teologia Moral (Gregoriana-Roma)

Pós-graduado em Teologia Pastoral (PUC-Minas)

Membro da SBTM (Sociedade Brasileira de Teologia Moral)

Pároco da paroquia de Santo Afonso Maria de Ligório-Natal/RN

Assistente Eclesiástico da Capela da UFRN


O título desta reflexão poderia ser o pseudoconservadorismo na sociedade e na igreja; pois, o que me motiva e embasa a escrevê-la é o “estudo sobre a personalidade autoritária”, de autoria do sociólogo Theodor W. Adorno (cf. pág. 379-399). O que temos vivido e constatado nos fenômenos sociais e eclesiais nos últimos tempos tem sido objeto de debates constantes em agrupamentos de reflexão, que se debruçam sobre esses fatos que são constitutivos de polarizações marcadas por intolerância e violências físicas e simbólicas. Há uma intensificação de relações virulentas e desconstrutivas na ordem sistêmica pós-moderna e, ainda mais, pós-pandemia, como tivemos a oportunidade de perceber no contexto sócio-político do Brasil recente.


Adorno, tratando mais especificamente das características psicológicas dos conservadores genuínos e destas figuras falsificadas, constata que os primeiros, “apoiando não apenas o capitalismo em sua forma liberal e individualista, mas também aqueles princípios do americanismo tradicional que são definitivamente antirrepressivos e sinceramente democráticos, como indicado por uma rejeição irrestrita a preconceitos anti-minorias, com caráter potencialmente fascista” (cf. pág. 379). Os pseudoconservadores, em contrapartida, tem “a estrutura psicológica que corresponde ao convencionalismo e a submissão autoritária no nível do eu, com violência, impulsos anárquicos e destrutividade caótica na esfera do inconsciente” (cf. idem). Essa diferenciação e atenção aos perfis identitários são relevantes para entendermos a situação comportamental das pessoas no contemporâneo. Poderíamos também, por uma via dialética, assumir as formas dos progressistas e pseudoprogressistas, que neste estudo não são descritas pelo autor; mas que são perceptíveis em nossas sociedades, principalmente quando os estilos de vida são absorvidos pelos mecanismos capitalistas. Há confluências comportamentais.


O autor pontua essa diferenciação mostrando que “todos os movimentos fascistas empregam oficialmente ideias e valores tradicionais, mas na verdade dão a eles um significado totalmente diferente, anti-humanista. A razão para que o pseudoconservadorismo para ser um fenômeno caracteristicamente moderno não é que algum novo elemento psicológico tenha sido adicionado a essa síndrome particular, que provavelmente foi estabelecida durante os últimos quatro séculos, mas que as condições sociais objetivas tornam mais fácil para a estrutura de caráter em questão se expressar em suas opiniões declaradas” (cf. idem, pág. 381). Adorno, como filho do seu tempo (Frankfurt, 11/09/1903 - 06/08/1969), não tinha os mesmos elementos de potencialização da nossa época, mas já tinha ciência da força dos meios de comunicação para o fomento da “indústria cultural” e meio de manipulação das massas. O anti-humanismo denunciado por ele é próprio da engenharia social deste contexto das duas grandes guerras. As sequelas estruturais e existenciais são constatadas, descritas e também interpretadas pelos grandes pensadores deste período, como uma época de ofuscamento da razão e “tempos sombrios” (cf. H. Arendt).


O pseudoconservadorismo não considera importante, para o sistema democrático, as instituições como canais do poder popular. Estas devem ser desconstruídas e superadas, caso não atendam aos anseios dos projetos fascistas e ditatoriais. Aí entra a importância de uma ‘personalidade’. Nesta época, surgem os protótipos desta “personalidade autoritária” que dão asas aos regimes totalitários. Na Rússia, Alemanha e Itália, essas figuras são identificadas. Sabem como usar a propaganda para o favorecimento político. Àquela época, como também, nas precedentes fases da história da humanidade, a própria arte fora instrumentalizada com finalidades de autopromoção e manutenção do status quo. Já o ‘conservador genuíno’ não nega as vias democráticas e sua importância à consecução do bem comum e a realização da justiça social. Com esse o diálogo e a racionalidade política são possíveis e encontram aceitação. Os diferentes e as minorarias são reconhecidos, sem prejuízo das convicções pessoais da maioria.


A Igreja vive um momento de muita intensidade discursiva acerca de temas que batem à sua porta e que precisam ser considerados por todos os agentes pastorais da catolicidade nos tempos hipermodernos. O Papa Francisco tem sido um tenaz timoneiro da Barca de Pedro no enfrentamento dialógico destes desafios que interpelam a missão da Igreja, com a razão do seu existir. Nesses anos em que tem sido Sucessor de Pedro, nos convoca constantemente a uma “conversão missionária: pessoal e estrutural” (cf. EG. Cap. I). As reformas passam pela convicção que todos precisamos “estar em saída missionária”. As fronteiras geográficas e existenciais do mundo são o nosso horizonte. A Igreja deve estar ‘misturada’ com o mundo, sem ser do mundo. Não pode ser mundana, mas é sua vocação ir ao encontro dos que ainda não ouviram, nem sentiram a “Alegria do Evangelho”. Não estamos mais no tecido social da cristandade. A sua capilaridade já não é definidora dos valores e costumes das pessoas, ainda mais intensamente em ambientes marcados pelo secularismo. As bolhas eclesiásticas preferem estar nas zonas de conforto e comodidade falando para si mesmas, sem nenhum compromisso missionário e evangélico. O culto é isolado da missão e recheado de narrativas pré-modernas e, alguns frequentes casos, à revelia do Concílio Vaticano II. Essa postura fere a comunhão eclesial e coloca vários sinais de alerta acerca de “cismas em pedaços”, com o fedor da divisão e da discórdia.


O Cardeal Walter Kasper falando sobre as mesmas divergências existentes nos tempos do Concílio Vaticano II faz uma observação interessante. Segundo ele, “já durante este Acontecimento delinearam-se dois grupos que logo foram chamados ‘conservadores’ e de ‘progressistas’. Nesse contexto, os dois conceitos tinham primeiramente um significado distinto daquele que assumiram após o Concílio. Com efeito, os que naquela ocasião foram chamados de ‘progressistas’ eram, na verdade, os ‘conservadores’, que renovaram a validade da tradição maior e mais antiga da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja, ao passo que os ‘conservadores’ de então estavam unilateralmente fixados na tradição pós-tridentina dos últimos séculos” (cf. A Igreja Católica: Essência, Realidade e Missão, pág. 35). Essa informação é extremamente relevante para que possamos acompanhar evolutivamente os contornos da eclesiologia pós-conciliar, com seus paradigmas de interpretação e recepção.


Os baluartes das tradições, que relativizam a Tradição autêntica (cf. 1 Cor 11 e 15), que aparecem nos nossos dias como ‘conservadores católicos’, paladinos da doutrina e da moral, estão a identificar-se com os pseudoconservadores descritos e analisados por Adorno. E isso por que? Há uma forte e intensa manobra, principalmente pelo uso irrestrito das mídias sociais para desconstruir as instituições de representatividade da Igreja. Observemos os ataques ao sínodo, à CNBB e quaisquer proposições de reformas implementadas pelo atual pontífice. Pelo uso de aparatos econômicos, patrocinados por políticos e empresários, de linhagem ideológica que não aceitam os ensinamentos do magistério eclesial, que tem na Doutrina Social da Igreja as suas prerrogativas, bem apresentados e lucidamente apresentados por Francisco, dão passos largos com finalidades bem clarividentes. O componente definidor da ‘cruzada inquisitória’ contra o Papa é ideológico. Não é, nem evangélico, nem doutrinal. Os argumentos postos são eivados de superficialidade reflexiva, sem uma “justa hermenêutica conciliar”, como tanto nos ensinou o teólogo e predecessor de Francisco, o Papa Bento XVI. O paradigma dialógico e relacional, que superou o do substancialismo medieval e o do subjetivismo moderno, é rechaçado por estes neoconservadores, com suas apologéticas imediatas e exclusivas.


Outro teólogo, que distancia qualquer suspeita de ortodoxia eclesiológica, especialmente neste caso da importância do Papa para a confirmação da catolicidade, é Urs Von Balthasar. Ele constrói uma teologia do primado petrino na Igreja, com sua importância e razão de ser. O Papa sintetiza o valor da unidade histórica da Igreja (cf. Esistenza sacerdotale, pág. 35). O “complexo antirromano” tem assumido acepções, principalmente na modernidade, depois da afirmação dogmática da “infalibilidade papal”, que de tempos em tempos abre discussões acaloradas e inquietantes. Vale ressaltar que com os predecessores de Francisco não foi diferente. O que torna o embate contemporâneo mais instigante é, sem dúvida, a força e o poder de penetração social das mídias digitais. Essa extraterritorialidade portada por estes instrumentos, tem colocado em estado de vigilância todos os envolvidos nas novas modalidades de viver as relações, tanto eclesiais quanto sociais. As identidades hierárquicas e institucionais estão também sendo questionadas pelas muitas formas de “microfísicas do poder”, como profeticamente nos alertou Michel Foucault (cf. Microfísica do Poder).


Sendo assim, os elementos postos, como tem sido uma preocupação constante em minhas abordagens, devem nos levar ao aprofundamento das nossas intenções e caminhos que somos chamados a seguir nesta época de tantas incertezas. Na Igreja também vivemos tempos em que estamos sendo desafiados a saber que lugar ocupamos na história contemporânea. As nossas atitudes são de acolhimento dos ensinamentos e mandato de Jesus Cristo, no concernente ao “Ide e anunciai! (cf. Mc 16,15). O sínodo sobre a sinodalidade, já na carta dirigida ao povo de Deus, mais uma vez, assim como o Concílio Vaticano II, nos traz essa grande preocupação, com percepções adventícias do rosto de Igreja que seremos evocados a ser no III Milênio, em comunhão, participação e missão. Assim o seja!



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