Por Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Mirassol - Natal
A Igreja vive o tempo litúrgico da Quaresma. São os quarenta dias que antecedem as celebrações pascais. Durante esse tempo, nos preparamos espiritualmente para celebrar a Páscoa do Senhor. Somos chamados a viver práticas penitenciais: o jejum, a caridade e a oração (cf. Mt 6, 1-8). Na quarta feira de cinzas o convite à penitência e à conversão. O cuidado na condução da vontade para reconhecer o outro e converter o coração para Deus é o fim das atitudes exigidas. É uma forma diferente de impostar a existência humana. O absoluto é o totalmente outro. A abertura ao transcendente é que nos motiva. A fé passa a ser a luz que ilumina e ressignifica a nossa história. O tempo quaresmal é uma oportunidade de revisitarmos nossas relações e nos reconciliarmos com tudo e todos que foram afetados pelos nossos pecados; a nossa negação do amor e as nossas infidelidades à compaixão. É um mergulho nos nossos fracassos como filhos de Deus e seguidores de Jesus Cristo. É uma oportunidade de percebermos que a nossa vida pode ser uma páscoa constante. Essa passagem da condição de pecadores para a de agraciados pela ação redentora de Deus, realizada em Jesus Cristo, para a nossa salvação.
Nós, presbíteros, somos pecadores. Necessitamos do cuidado misericordioso de Deus, que é aquele Pai que está sempre a nos esperar; aguarda a nossa conversão e pelo nosso ‘cair em si’ (cf. Lc 15, 17-32). A nossa vida é assinalada pelo abandono, em muitas circunstancias, da sua casa. Lá é o lugar da comunhão e da aliança. É o lugar da alegria e da felicidade. O tempo quaresmal nos propõe esse fascínio por esse lugar do mistério que preenche a nossa inquietante busca pela verdade. Podemos dizer que é um ‘lugar teológico’. Entrar nessa realidade é a forma que temos de viver bem esse tempo de graça e salvação. Durante esses quarenta dias somos interpelados cotidianamente a não temer essa nossa humanidade instigada pelo violento secularismo, que nos oferece tantas formas distorcidas de substituir Deus pelos deuses do poder, do ter, do saber e do prazer. Como cristãos, precisamos discernir os sinais dos tempos, para que caminhos que nos levem à verdade não sejam esquecidos e abandonados. Por isso que, assim como o Filho Pródigo, nós também necessitamos fazer a memória do que temos na intimidade com o Pai. Esse é o processo que no nosso interior temos que percorrer, com fé e desejo de mudança de vida.
No retiro espiritual, nós também somos provocados a não esquecer o primeiro amor (cf. Ap 2, 4-5). Esse é sempre o amor de Deus, que nos amou antes de todo o tempo. A nossa experiência vocacional está construída nessa história de amor. Os pressupostos individuais são também as bases para que pensemos a vida da Igreja, que tem um Esposo (cf. Mc 2, 19; Ap 19,7; 21,2.9; 22,17; Ef 5,25-26). Os primeiros cristãos passaram também pelas suas dificuldades para permanecerem fiéis. Neste tempo quaresmal, cada membro da Igreja precisa estar à escuta da palavra de Deus, que nos indica a via a ser seguida como discípulos e missionários. No seu comentário ao Sermão da Montanha, Santo Agostinho afirma que “todos os que se convertem a Deus perdem as alegrias fáceis deste mundo, alegrias que tanto amavam neste mundo. Deixam de gozar aquilo que antes os deleitava. Suas alegrias mudam de natureza e, por isso, enquanto seu coração não se inflamar pelo amor das coisas eternas, ver-se-ão aflitos por certa tristeza”. Para reviver a mística do primeiro amor, é necessário pensar a Quaresma como esse tempo em que o nosso ‘ser cristão’ é testado acerca das nossas escolhas. Em cada fase das nossas precisamos prová-las e reanimá-las. O parâmetro da conversão autêntica será o da nossa escolha em fazer a vontade de Deus. Por isso, que tanto pessoalmente, como eclesialmente, somos envolvidos neste tempo para viver a nossa saída de si e nos confrontarmos com nossas paixões.
Nos nossos dias, cada vez mais, o povo de Deus e a sociedade tomam consciência dessa dimensão humana dos presbíteros. Mesmo que ainda exista uma imagem no ‘inconsciente coletivo’ da sacralidade da figura sacerdotal, com a força e o poder de penetração dos meios de comunicação, cada vez mais os fiéis estão a conhecer que a vocação sacerdotal está contida em vasos que precisam ser moldados pelas mãos do oleiro (cf. Jr 18,4). É importante que todos aprendamos a refazer nossos estilos de vida. Com mais coragem da verdade sobre nós mesmos e sobre os outros. Viver em bolhas, com autoalienação e desprezando a importância do testemunho pessoal e eclesial é danoso para todos. Tem que haver desejo de conversão e maturação antropológica integral e integrativa. A meta é sempre a nossa santificação. A existência presbiteral exige isso de todos nós. Devemos assumir o fato de que somos pecadores; mas abertos a nos colocar na presença do Senhor e pedir: Tem piedade de mim, Senhor, pois sou pecador (cf. Lc 18,13). É assim que devemos estar diante de Deus.
Enfim, a vocação sacerdotal deve ser alicerçada antes de tudo numa plena vocação cristã, que, por sua vez, também exige uma favorável estrutura humana. O retiro espiritual para os presbíteros é essa oportunidade para revisitarmos a nossa história, marcada por acertos e erros; sinais de virtude e tropeços existenciais. A abertura à ação da graça de Deus, no confronto com a sua palavra e docilidade aos movimentos do Espírito Consolador serão fonte de crescimento humano, cristão e espiritual para todos nós e, consequentemente, para o bem e a santificação do povo fiel de Deus, que nos foi confiado; não por merecimento nosso, mas por vontade Daquele que é o único e eterno Bom Pastor. Assim o seja!