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O aborto e a ideologia de gênero


Pe. Matias Soares

Mestre em Teologia Moral (Gregoriana-Roma)

Pós-graduado em Teologia Pastoral (PUC-Minas)

Membro da SBTM (Sociedade Brasileira de Teologia Moral)

Pároco da paróquia de S. Afonso Maria de Ligório/Natal-RN


O Brasil vive, mais uma vez, as expectativas e debates, que envolvem desde a Corte máxima do poder judiciário nacional, o STF, até os mais recônditos lugarejos do país, nos quais se discutem sobre a descriminalização, ou liberação, como a massa costuma dizer, da prática do aborto, que neste momento versa sobre a sua possibilidade até à décima segunda semana de gestação. A questão trás para as suas narrativas e argumentações de ordem científicas, filosóficas, religiosas e bioéticas que acaloram e tornam complexas as várias formas de defesas e contrapontos. Os tantos “Amicus Curiae” - Amigos da Cúria – que são convidados para suas exposições, tendo em vista a ampliação do debate com representações da sociedade civil organizada, também tentar respaldar as perspectivas dos contraditórios.


A dimensão biológica, que serve de parâmetro para a argumentação de quando começa a ‘existir’ a vida humana e como a identidade de gênero é ‘reconhecida’, é determinante, tanto para quem defende, ou não, o aborto; como para quem é paladino da ideologia de gênero, ou não. No primeiro caso a formulação de que a vida só começa com a total estruturação biológica e genética do embrião e, no segundo caso, a defesa de que a identidade de gênero é relativa e depende das variações culturais das pessoas e dos sujeitos que fazem parte das ordens sociais vigentes. Em ambos os casos, a antropologia é dualista e bem enraizada nos pressupostos epistemológicos da filosofia cartesiana, como referência paradigmática da mentalidade moderna. Uma concepção do humano, com sua ontologia integral é dispensada e até considerada ingênua e mitológica, já que tem suas raízes na antropologia semítica que, por sua vez, encontrar-se-á definitivamente com o pensamento greco na síntese feita por Tomás de Aquino na sua Suma de Teologia (cf. Questões 75-102).


Em pesquisas dos últimos anos, tem sido constatado que cerca de setenta e cinco a oitenta por cento dos brasileiros são contra a descriminalização do aborto. Nos ambientes dos ‘iluminados’ dos meios de comunicação e academias há uma defesa maior da proposta. A ideia da autonomia da mulher e as liberdades reprodutivas em detrimento da vida das crianças concebidas é o que motiva os intentos das discussões em torno da questão, que abarca muitos outros interesses, inclusive econômicos. Esse “autopoder” do indivíduo não pode ser tido como argumento para o assassinado de uma “pessoa concebida”. Um direito da mulher não pode ser salvaguardado com a violência do direito de outro ser humano, ainda mais pela sua própria condição de vulnerabilidade. Os elementos chamados em causa, como a realização de abortos na clandestinidade e, ainda, usar do artifício de que são as mulheres negras e pobres que mais praticam os infanticídios, porque o Estado criminaliza a prática, é sofisma e passível de negação. Atribuir à desigualdade social a causa e a necessidade do reconhecimento do direito ao aborto é uma tentativa horrenda de manipular a opinião pública em função de ideologias que relativizam a dignidade da pessoa humana, desde a sua concepção até o seu fim natural.


Com frequência é socializada a ideia de que nos países desenvolvidos essas práticas já são reconhecidas. Sobre esse argumento, seria interessante também pensar a situação de natalidade destas nações evoluídas. A realidade do continente europeu, que tem visto a sua identidade cultural comprometida, com um futuro geracional sem muitas perspectivas, também deve ser conhecida e sevada em consideração. Os grandes pensadores que têm se debruçado sobre o contexto do Velho Mundo, demonstram preocupação com as transformações que estão acontecendo e que ainda acontecerão, já que as novas gerações de casais não têm ‘motivações’ para gerar filhos naquele contexto. As investidas contra os elementos constitutivos daquelas populações, que tanto colonizaram e exploraram outros povos, deles tirando os seus recursos e riquezas, não poderiam ser referências desenvolvimentistas para os países em ‘via de desenvolvimento’ do terceiro e quarto mundo. Ainda vivemos com mentalidades de colonizados, que achamos que o vivido em outras civilizações é o padrão para quem não é, nem está lá onde estas vivem, com seus dramas antropológicos e sociais.


A sociedade precisa participar do debate, exigindo, inclusive, que o próprio Estado garanta os direitos das crianças desde a sua concepção. As políticas públicas que são cobradas para que estas sejam assassinadas com a ação abortiva deveriam ser reivindicadas para que a vida da criança pudesse ser respeitada e protegida. Com a despenalização do aborto, através de mais uma lei tipificada, caso aconteça, os malefícios psicológicos serão tremendos também para os que estão envolvidos, tanto direta, como indiretamente. Uma mulher que aborta sempre carrega cicatrizes e sequelas por toda a vida. A experiência de escuta nas comunidades, nos confirma esse dado. Os que buscam esse tipo de reconhecimento estatal, tem mais em vista as defesas e idolatrias ideológicas do que humanistas.


A outra preocupação é sobre o que se propõe também em outro âmbito, que é a proposição de ser massificada, especialmente nas escolas, a “ideologia de gênero”, mesmo sem a anuência, nem participação dos pais no processo. Neste caso, o dado biológico é renegado. As pessoas não nascem homem e/ou mulher; mas se tornam historicamente, um ou outro. Não é considerado a corporeidade como fator determinante da identificação do macho e da fêmea. Em meio as questões que, deveras, devem ser encaradas na sua complexidade, a imposição destas narrativas sobre ‘gêneros’ difusos é extremamente preocupante. Impor uma ideologia de poucos, em confronto com as concepções e princípios que perpassam a memória histórica e cultural de povos e nações é um dos tantos traços da tentativa de desconstrução de valores que formaram e são as bases da nossa organização social e sistêmica.


A Igreja tem uma reflexão sobre gênero. Mas com sua fonte num personalismo que constata que o homem e a mulher são abertos ao reconhecimento da identidade existente em cada um, que pressupõe um corpo, uma capacidade intelectiva, ou alma intelectiva, com uma dimensão espiritual que faz com que à pessoa humana esteja aberta ao Transcendente. Aqui podemos também chamar ao cenário concepções antropológicas contemporâneas, com E. Lévinas, M. Buber e outros que apresentam o paradigma da alteridade como uma via razoável para que o Outro seja, com sua face e o seu nome, a razão de ser da nossa complementariedade. Talvez, uma das mais urgentes preocupações que todos precisamos ter é colocar nas várias oportunidades que tivemos, essa reflexão ao discernimento de todos.


Por fim, é justo que estejamos atentos ao desafio da promoção deste debate, que exige de todos respeito aos dramas existentes na vida de cada família e, no contemporâneo, na sociedade como um todo. Não podemos tratar destas questões como tantas pessoas não estivessem envolvidas, e estão. Contudo, podemos discutir, amadurecer e propor caminhos razoáveis para estes temas não sejam tratados com banalidade por ninguém, ainda mais quando são jogados pelos meios de comunicação, sem atenção ao que todos os agentes sociais estão pensando. Os cristãos, com nossas convicções evangélicas, considerando o Humano, na sua totalidade e integralidade, desde a sua concepção até a sua morte natural, com suas orientações acerca da família, precisamos participar deste debate com racionalidade, respeito e atento à dignidade de todos os envolvidos, com atenção à verdade, na caridade. Assim o seja!

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