Por Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conjunto Mirassol - Natal
A Igreja assumiu com clarividência o empenho de abrir-se ao diálogo com a cultura e as questões antropológicas contemporâneas. O Concílio Vaticano II, especialmente com a Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), é a referência magisterial para pontuamos essa perspectiva. O fim da idade moderna, como ponderou R. Guardini, com as transformações que partem do sujeito para o ‘admirável mundo novo’, agora marcado pelas ebulições técnicas e culturais, abriu caminhos pelos quais todos tivemos que trilhar. As revoluções ensejadas, a partir da crise antropológica do pós-guerra, culminando com as inovações representadas pelo surgimento da internet, que farão do mundo essa ‘aldeia global’, trarão o que os pensadores sociais qualificarão com pós-modernidade. O que o humano tem como elemento a ser desenvolvido e controlado, é o que a mesma Igreja tem como via indispensável para promover o anúncio do evangelho e as possibilidades de diálogo com tudo o que estiver nas suas realidades de fronteira. Por isso, as iniciativas empregadas pastoralmente pelo Papa Francisco devem ser acolhidas por toda a Igreja, com as considerações que estão bem delineadas pelo evento conciliar (1962-1965). Alguns destes temas, poderiam ser elencados, se quiséssemos considerar uma justa hermenêutica conciliar (cf. Bento XVI). Contudo, essa não é nossa intenção. O objetivo desta reflexão é levar ao debate nossas preocupações pastorais; como também, nas nossas relações institucionais abrir canais de diálogo para que a promoção do bem comum e da justiça social possam ser buscadas incessantemente para cada pessoa humana. Sendo assim, a partir das preocupações pastorais do magistério do Papa Francisco, pensemos alguns temas, a saber:
1- Pacto Educativo Global: Com os pensamentos seguintes, esclarece o Papa Francisco o objetivo deste Pacto: “promovi a iniciativa dum Pacto Educativo Global, ‘para reavivar o compromisso em prol e com as novas gerações, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão’, convidando todos a ‘unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna’” (cf. Vat. News, 05/10/21). O que Francisco deseja é que haja a preocupação e o empenho de todos os sujeitos sociais na construção de projetos educativos comuns. A partir de uma clarividente compreensão de um humanismo integral e solidário, que tenha em conta o bem universal de cada pessoa humana, com suas muitas formas de relação, inclusive com a própria Criação, que precisa ser cuidada e salvaguardada de todas as formas de ações que levem à sua destruição e degradação causadas pelo próprio ser humano (cf. LS, caps: III-IV). Com essa orientação magisterial, a própria Igreja pode gerar espaços de debate e proposições para que sejam firmados pactos educativos nos estados e municípios, com o diálogo permanente com as instituições de ensino, firmando parcerias e convênios em favor da sociedade.
2- Inteligência Artificial: Esse tema poderia ser posto no precedente; contudo, é interessante colocá-lo à parte, tendo em vista, as interrogações que estão a surgir sobre o que ele representa para o futuro da humanidade. Em duas das suas últimas mensagens - no “Dia Mundial da Paz” (01/01/2024) e próximo “Dia Mundial das Comunicações Sociais” (12/05/2024) - sobre a IA, o pontífice afirma que “até ao momento, não existe uma definição unívoca no mundo da ciência e da tecnologia. A própria designação, que já entrou na linguagem comum, abrange uma variedade de ciências, teorias e técnicas destinadas a fazer com que as máquinas, no seu funcionamento, reproduzam ou imitem as capacidades cognitivas dos seres humanos. Falar de ‘formas de inteligência’, no plural, pode ajudar sobretudo a assinalar o fosso intransponível existente entre estes sistemas, por mais surpreendentes e poderosos que sejam, e a pessoa humana: em última análise, aqueles são ‘fragmentários’ já que têm possibilidades de imitar ou reproduzir apenas algumas funções da inteligência humana”. Com a IA muitas mudanças surgiram num futuro não tão distante e, para ele, a humanidade e a Igreja são chamadas a prepararem-se.
3- Cuidado com a Casa Comum: O ponto de partida para que a Igreja tenha presente a sua preocupação com a nossa casa comum – a criação – a sua teologia da criação (cf. Gn 1-2). A teoria criacionista não renega a teoria da evolução, hoje com todas as possibilidades de diálogo e percepções que se entrecruzam. Falando à Pontíficia Academia das Ciências, assim se pronunciou o Papa teólogo, Bento XVI: "A verdade científica, que é em si mesma uma participação na Verdade divina, pode ajudar a filosofia e a teologia a compreender cada vez mais plenamente a pessoa humana e a Revelação de Deus acerca do homem, uma Revelação que se completa e se aperfeiçoa em Jesus Cristo” (cf. Vat. News: 06/11/2006). O pensamento social do Papa Francisco encontra fundamentos científicos e ministeriais, na evolução histórica precedente para firmar a sua preocupação ecológica, social, econômica e, antes de tudo, antropológica com os desafios emergenciais que estão a assolar o meio ambiente (cf. Laudate Deum).
4- Fraternidade e Amizade Social: O cristianismo parte do princípio teológico que todos fomos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-28). O pecado trouxe a divisão e a violência para as relações humanas. Em Jesus Cristo, pelo batismo, nos tornamos filhos no Filho (cf. Lc 11,2-4; Rm 8,15). Por isso, somos todos irmãos e irmãs (cf. Mt 23,8). O Papa Francisco, mais uma vez, impulsionado também pelo testemunho de São Francisco de Assis, nos lança o convite para que fomentemos uma fraternidade universal. Num mundo marcado por polarizações, divisões e guerras, precisamos dar passos qualitativos para a promoção do acolhimento, do respeito, da integração e à abertura ao diferente. As violências físicas, psicológicas e simbólicas podem ser superadas. Podemos sonhar com um mundo melhor, no qual as pessoas se reconheçam como humanos, com rosto e nome (cf. E. Lévinas). Uma ética da alteridade, dos sujeitos dignos de direitos e deveres, capazes de paz e solidariedade.
5- Justiça Social: A promoção da justiça está no DNA da existência cristã (cf. Mt 5, 6; 25, 35-45; Lc 6, 17-36). O discípulo missionário de Jesus Cristo deve ser promotor da justiça. A conversão a Deus é concomitante à conversão ao irmão (cf. 1Jo 4,20). No cristianismo, fé e justiça social são indissociáveis. Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo tem implicações existenciais e sociais. A Doutrina Social da Igreja tem esse pressuposto evangélico. O querigma tem esse pressuposto ético. Assim nos ensina o Papa Francisco: “O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade” (cf. EG. 177). A moral social cristã está fundamentada no amor. Bento XVI, também, na segunda parte da sua carta programática um ensinamento contundente acerca desta responsabilidade da existência cristã (cf. DCE. II Parte – Caritas – A prática do amor pela Igreja). Há uma amplíssima literatura e, acima de tudo, o testemunho que está presente em toda a história do cristianismo que confirmam a convicção cristã de que é próprio da identidade cristã tornar credível a sua fé pela prática do amor enquanto meio de consecução da justiça social.
Enfim, essas questões de atualidade são referências transversais que podem gerar atitudes dialógicas, quando há consenso no que concerne o bem comum a ser buscado pela Igreja e demais instituições sociais. Na dimensão profética, tudo o que configura desprezo do amor e da justiça; ou seja, negação da conversão a Deus, com os sinais do seu Reino, (cf. Mc 1,14-15; Mt 5, 1-12; Lc 6, 17-36), deve ser proposto e denunciado. O profetismo é revestido de denúncia e fidelidade à mensagem de libertação e salvação que Deus quer para o seu povo. A Igreja não pode trair essa sua vocação e missão, já que é formada por todos os batizados, que à luz do mistério de Jesus Cristo, são vocacionados a ser sacerdotes, reis e profetas. Por isso, o diálogo e a profecia são duas vias que devem ser trilhadas pela Igreja na sua interação com o mundo. Assim o seja!