Dom João Santos Cardoso Arcebispo de Natal
A Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE), do Papa Francisco, destaca um modelo de santidade que expressa solidariedade com a dor do próximo e rejeita a concepção de santidade baseada na autopercepção como "superior aos outros por cumprir determinadas normas" ou por aderir "a um certo estilo católico" (GE, n. 49). Além disso, repudia uma visão de santidade que vê a salvação como resultado do esforço pessoal e das capacidades humanas, resultando em autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor (GE, n. 57).
Essa espiritualidade se manifesta em diversas atitudes aparentemente distintas, como a "obsessão pela lei, o fascínio por exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, o orgulho ligado à gestão de assuntos práticos, a atração por dinâmicas de autoajuda e autorreferencial realização" (GE, n. 57). É nisso que alguns cristãos investem suas energias e tempo, ao invés de permitirem-se ser guiados pelo Espírito no caminho do amor, apaixonar-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho, e buscar os afastados nas vastas multidões sedentas de Cristo (GE, n. 57).
Somos desafiados a professar uma fé solidária, ultrapassando o intimismo, permitindo-nos ser tocados pelo outro caído ao longo do nosso caminho. A fé cristã nos compromete a vivenciar uma espiritualidade que nos conduza a participar do mistério da misericórdia divina, fazendo da misericórdia um estilo de vida, a meta a ser alcançada em todas as nossas ações. Assim, a perfeição cristã é alcançada à medida que a misericórdia molda os desejos, as obras, os pensamentos e a vida do cristão. É uma meta desafiadora, mas possível, desde que o cristão se abra para acolher a misericórdia divina.
Conforme nos ensina o Papa Francisco, a misericórdia não apenas nos vincula ao outro que vive em situação miserável, de carência e necessidade, mas também nos compromete com a Criação. "Quando maltratamos a natureza, maltratamos também os seres humanos" (Cf. Mensagem pelo Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação de 2016). Não podemos ser indiferentes à perda da biodiversidade e à destruição dos ecossistemas, frequentemente causadas por nossos comportamentos irresponsáveis e egoístas. "Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem." (Laudato Sì, n. 33).
Na crise antropológica e ambiental em que vivemos, a fé cristã nos compromete com uma ecologia integral e nos instiga a adotar atitudes novas fundamentadas numa espiritualidade do cuidado e da sobriedade, que nos auxilie a repensar nossos hábitos de consumo e nos liberte da indiferença perante a destruição do ambiente humano. A destruição ambiental é um problema grave, pois Deus confiou o mundo aos nossos cuidados, e a própria vida, em sua diversidade, é um presente a ser protegido contra várias formas de degradação (Laudato Sì, n. 5).
A cultura atual, marcada pela imanência, aprisiona o ser humano no imediato e não responde às suas aspirações mais profundas quanto ao sentido da vida e à realização pessoal. Somente por meio de um novo humanismo, com Cristo como referência, que revelou em seu mistério a plenitude da vocação humana e do sentido da vida, poderemos vivenciar uma fé engajada capaz de reconhecer no outro a face de Cristo. A fé cristã é desafiada a responder à busca do sentido da vida em uma sociedade que oferece entretenimento, mas é incapaz de satisfazer os anseios mais profundos do ser humano, especialmente os anseios por transcendência.
Mais do que nunca, a fé cristã tem a responsabilidade de proporcionar o que somente ela pode oferecer às pessoas de nosso tempo: acesso a uma experiência de espiritualidade e transcendência, com um testemunho de vida credível e entusiasta, de oração e compromisso com as exigências éticas da vida cristã. Que possamos viver uma espiritualidade que nos ajude a nutrir o sonho de cuidar e melhorar o mundo com mudanças profundas "nos estilos de vida, nos modelos de produção e consumo, nas estruturas consolidadas de poder que regem as sociedades hoje" (Laudato Sì, n. 5).