Por Pe. Matias Soares Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Mirassol
A proposta querida e apresentada pelo Papa Francisco sobre “uma economia que esteja a serviço do ser humano, que seja inclusiva e igualitária, com prioridade no bem comum, na globalização da solidariedade, na fraternidade universal, na justiça social e no cuidado com a nossa casa comum”, tem suas fundamentações na Doutrina Social da Igreja. É necessário seguir o itinerário traçado pelo pensamento social cristão para compreender a perspectiva anunciada por Francisco. As motivações também postas já na escolha da cidade de Assis e a quem é dedicado esse pacto já é um programa que o Sumo Pontífice deseja esboçar no presente com o olhar voltado para o futuro.
O Papa Francisco afirma a motivação da escolha do nome, que é até mesmo um programa pautado no evangelho e no testemunho de Francisco de Assis como um santo que viveu a radicalidade evangélica em plena comunhão com os irmãos mais pobres e com a criação. Essa coerência é desejada pelo Pontífice também no seu exercício do ministério petrino. A economia precisa de alma. Necessita de qualidade humana integral. Na carta dirigida aos participantes do evento na cidade de Assis, assim expressa-se Francisco:
“O título deste evento — “Economy of Francesco” — refere-se claramente ao Santo de Assis e ao Evangelho que ele viveu em total coerência, inclusive nos planos económico e social. Ele oferece-nos um ideal e, de certa maneira, um programa. Para mim, que escolhi o seu nome, é contínua fonte de inspiração” .
A participação brasileira tem um acréscimo, nominando suas atividades trazendo também a pessoa de Clara de Assis para o contexto, justamente para considerar o papel da mulher como protagonista de uma economia que tem um rosto mais humano e com sensibilidade capaz de perceber as demandas existenciais de uma realidade brasileira marcada pela fome, miséria, desigualdade social, carência de garantia de direitos sociais para todos os cidadãos, urbanização desorganizada, com inchaço cada vez mais precários das grandes cidades, com um altíssimo índice de violência, com taxas de analfabetismo ainda incompreensíveis, com um total de descaso da classe política que aparelha o estado para fins eleitoreiros, com ameaças constantes ao estado de direito e à democracia, com polarizações irracionais e ideológicas, com agravamento de outras crises pós-covid e neste cenário global de guerra. Por tudo isso, convém que pensemos na urgência de ‘pacto’ por uma economia que tenha os propósitos traçados pelo Papa Francisco .
O Pontífice já na introdução esclarece que deseja esse ‘encontro’ com aqueles que estão começando um novo caminho, que podem traçar novas metas para a economia servidora e promotora da vida, que não potencializem os canais de morte e exclusão social, que transformem as situações nas quais a ecologia integral seja pensada a partir do ser humano, dos povos das periferias do mundo, que são vitimados e violentados diariamente pelos projetos de um capitalismo parasitário. Urge uma construção propositiva que envolva a todos os descartados por essa economia mecanicista e especulativa, que gera um hiper capitalismo que vê nas pessoas não sujeitos da história, mas meios supérfluos que devem ser usados e manipulados pela ideologia de liberalismo que mais escraviza do que liberta; pois massifica a percepção de que as pessoas só são o que podem comprar, consumir e utilizar. São percepções como essas que nos colocam em sintonia com a preocupação de Francisco quando nos trás a seguinte intenção sobre uma economia alternativa:
“um evento que me permita encontrar-me com quantos estão a formar-se e começam a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta. Um acontecimento que nos ajude a estar unidos, a conhecer-nos uns aos outros, e que nos leve a estabelecer um ‘pacto’ para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã” .
No Brasil de hoje, com preocupações sociais, econômicas, políticas e estruturais, tão bem declinadas pelos Bispos brasileiros , convém que haja uma reflexão mais ampla e aprofundada, principalmente a partir das comunidades eclesiais sobre a proposta do Papa Francisco. Ainda não houve uma democratização da proposta. A temática é necessária porque há no país um agravamento da crise civilizacional e de exclusão social. Números gritantes de mais de 33 milhões de brasileiros passando fome - e ‘fome’ é um fenômeno que demonstra o falimento do humano como ‘sujeito’ capaz de partilha e solidariedade. A Campanha da Fraternidade do ano de 2023 será justamente sobre a ‘Fraternidade e a Fome’. Neste contexto da preocupação de Francisco, será uma oportunidade particular para que aconteça o anúncio da conversão ao evangelho da vida, como também um tempo favorável de denúncia dos agravantes da miséria em nosso país. Como não indignarmo-nos com esta situação? Como não acolher e levar avante a proposta do Pontífice sobre a urgência de que seja “reanimada a economia”?
Francisco fala sobre o ‘humanismo da fraternidade’ , inspirado no estilo de vida do Pobrezinho de Assis. Esse modo de ser é provocativo para toda a humanidade. Principalmente, quando o fomento social é para que a ‘tirania do indivíduo’ sobreponha-se a vivência do bem comum. Como não pensar aqui, numa perspectiva mais global nos milhares de seres humanos que diariamente vivem a experiencia de imigração, que deixam suas casas, familiares, países de origem, sua cultura, para ser um ‘intruso’ nas realidades diferentes, que não acolhem, nem veem o outro como alguém merecedor e necessitado da ‘globalização da solidariedade’? Como não ser solidário e nos questionarmos sobre a situação da humanidade, quando vemos países em guerra, como a Rússia e Ucrânia, por causa de questões e interesses econômicos e totalitários? Quantos inocentes, crianças, mulheres e idosos que são ‘extirpados’ dos seus lares e que vagueiam por estradas sem norte e sem futuro definidos? É nesse contexto que precisamos colocar a proposta econômica, social, humanitária e evangélica do Papa Francisco.
Citando um documento do seu magistério, que é do “Pensamento Social da Igreja”, o Pontífice pontua que:
“Na Carta Encíclica Laudato si’ ressaltei que hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado e a salvaguarda do meio ambiente não pode ser separada da justiça em relação aos pobres, nem da solução dos problemas estruturais da economia mundial. Por conseguinte, é preciso corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito pelo meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, e equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das gerações vindouras. Infelizmente, ainda não foi ouvido o apelo a tomar consciência acerca da gravidade dos problemas e sobretudo a pôr em prática um modelo económico novo, fruto de uma cultura da comunhão, baseado na fraternidade e na equidade” .
Pensar a economia como a construção humana que trata das ‘leis da casa’ é condizente com a ideia de ecologia integral apresentada pelo Papa Francisco na Laudato Si (LS, cap IV) . A economia verdadeiramente humana tem que cuidar de quem está na casa, de quem a humaniza e a dignifica, especialmente dos mais pobres dos pobres. Eis o paradigma necessário: partir dos mais pobres dos pobres . Essa via de partir dos miseráveis é um método extremamente condizente com a provocação lançada por Francisco por uma economia que traga para o centro os sem rosto e sem voz.
É salutar lançar, a partir do evangelho, uma ‘ética social da responsabilidade’: o Estado, as demais instituições, como as universidades, Ongs, associações e, especialmente, como tem valorizado o Papa, todos os Movimentos Sociais, que devem ser ‘poetas sociais’ nesse processo de conversão das potencialidades econômicas . É recomendável a leitura dos discursos do Pontífice a estes Movimentos. Neles já está posto como que uma ‘direção’ que se espera seja dada à organização das comunidades e seguimentos sociais para a implementação de possibilidades solidárias e de organização social das pessoas, nos vários recantos da sociedade. O importante é iniciar processos. É importante ter metas para que todos possam ter casa, trabalho e terra para viver dignamente.
Por fim, o Papa volta-se para os jovens, tendo em vista as potencialidades
que os mesmos têm nesta construção e de um novo ordenamento desta ordem sistêmica:
“Caríssimos jovens, bem sei que sois capazes de ouvir com o coração os brados cada vez mais angustiantes da terra e dos seus pobres em busca de ajuda e de responsabilidade, ou seja, de alguém que ‘responda’ e não olhe para o outro lado. Se ouvirdes o vosso coração, sentir-vos-eis portadores de uma cultura corajosa e não tereis medo de arriscar, nem de vos comprometer na construção de uma sociedade renovada. Jesus Ressuscitado é a nossa força! Como eu vos disse no Panamá e escrevi na Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit: ‘Por favor, não deixeis para outros o ser protagonista da mudança! Vós sois aqueles que detêm o futuro! Através de vós, entra o futuro no mundo. Também a vós, eu peço para serdes protagonistas desta mudança. [...] Peço-vos para serdes construtores do futuro, trabalhai por um mundo melhor’” (n. 174) .
As questões a serem enfrentadas e transformadas exigem tempo. Mesmo com intentos em que já vivendo as várias consequências das injustiças no presente, faz-se mister o investimento e formação das futuras gerações, lembrando a todos que o futuro começa agora. Essa sociedade renovada e convertida, como lembra o Pontífice, exige a formação de consciências morais que consideram o outro; que sejam sensíveis ao outro na sua mais bela e profunda dignidade de pessoa humana.
Uma economia que está a serviço da humanidade, será reanimada pela fraternidade universal e justiça social promotoras da vida plena para todos os homens e os homens todos. Assim o seja!