ARTIGO - Quando a cidade escuta seus silêncios
- pascom9
- 10 de out.
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Por Ir. Vilma Lúcia de Oliveira, FDC
Membro da Congregação das Filha do Amor Divino, Historiadora e Professora, Coordenadora Geral do Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal, Membro da Comissão de Cultura e Educação da Arquidiocese de Natal, Coordenadora da Subcomissão de Bens Culturais da Igreja.
O Movimento de Natal como cartografia da esperança
Na lógica urbana dominante, o centro é o lugar do prestígio, da decisão, da visibilidade. A periferia, por sua vez, é muitas vezes tratada como margem — geográfica e simbólica — onde o poder hesita em chegar e o cuidado tarda em se instalar. Mas o geógrafo Milton Santos nos convida a inverter essa lógica. Para ele, o espaço não é apenas chão e construção: é também tempo vivido, relações sociais, afetos e resistências. “O espaço é o lugar da solidariedade e da vida” (SANTOS, 2006), revela o autor, mostrando que o território é atravessado por disputas, memórias e possibilidades.
É nesse chão periférico, onde o Estado se ausenta e o mercado silencia, que o Movimento de Natal se ergue como um gesto de reexistência. Ele não nasce de gabinetes, mas de encontros. É como uma rede de raízes que se entrelaçam sob o asfalto, buscando água onde disseram que só havia seca. Cada roda de conversa é uma fogueira acesa em meio à noite da exclusão. Cada ação comunitária é um poema escrito com mãos calejadas. Cada criança que aprende, cada mulher que lidera, cada jovem que sonha é uma linha traçada nessa nova cartografia, onde o território é vivido e não apenas administrado.
No bairro de Mãe Luíza, uma senhora de cabelos prateados abre a porta de sua casa para acolher crianças que não cabem nas salas de aula. Ali, entre panelas e cadernos, ela ensina que aprender é também resistir. Em Felipe Camarão, jovens se reúnem para discutir política, não a dos palácios, mas a que nasce do chão — a política do cotidiano, da sobrevivência, da esperança. Em cada canto da cidade, o Movimento de Natal se manifesta como um sopro de vida, como uma dança que desafia o compasso da exclusão.
Essas ações não são apenas pontuais: elas compõem uma tessitura coletiva, uma rede de afetos e práticas que reconfiguram o espaço urbano. Como diria Santos, “o território é usado de forma diferente por diferentes atores sociais” (SANTOS, 2002, p. 13) — e o Movimento de Natal é um ator que não pede licença, mas afirma presença. Ele transforma becos em bibliotecas, roças e calçadas em salas de aula, praças em palcos de cidadania. A cidade, então, deixa de ser um mapa frio e passa a ser corpo quente — corpo que sente, que escuta, que transforma.
Cada depoimento é uma cartografia viva. Uma mãe que diz “meu filho voltou a sonhar”, um adolescente que afirma “aqui eu sou ouvido”, uma educadora que confessa “nunca pensei que a periferia pudesse ensinar tanto”. São vozes que desenham uma cidade ou uma roça mais plural, mais justa, mais humana. São vozes que desafiam o silêncio imposto pelas estatísticas e pelas políticas que não chegam.
Ao escutar com atenção os ecos do presente, percebemos que o Movimento de Natal, mesmo nascido em outro tempo, já encarnava os princípios que hoje o Papa Francisco propõe no Pacto Global pela Educação. A centralidade da pessoa, o protagonismo comunitário, o cuidado com a Casa Comum e a educação como ato de esperança são marcas vivas do Movimento. Sem perder sua identidade local, ele inspira uma continuidade: mostra que é possível educar a partir da realidade, com os pés no chão e o coração aberto. O Pacto, por sua vez, reconhece que a transformação começa nas margens, onde a escuta é mais profunda e o vínculo mais verdadeiro. Assim, o que o Movimento viveu — e ainda vive — pode ser lido como uma semente que germina no solo fértil da sinodalidade, da Evangelii Gaudium, da Laudato Si’ e agora, também, do Pacto Global pela Educação.
“Quando a cidade escuta seus silêncios” evoca não apenas o que foi calado, mas também o que está prestes a ser revelado. Ele honra o Movimento de Natal como um gesto que dá voz ao que antes era apenas murmúrio — e transforma esse murmúrio em canto coletivo, capaz de redesenhar a cidade e o chão que germina longe do asfalto, com afeto, justiça e esperança.
Referências
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 2006.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
SANTOS, Milton. Território e sociedade: entrevista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Vaticano, 2013.
FRANCISCO. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. Vaticano, 2015.
FRANCISCO. Pacto Global pela Educação. Vaticano, 2020.







