
Pe. Paulo Henrique da Silva
Diretor de estudos do Seminário de São Pedro
Precisamos passar da apresentação da doutrina, do dogma para a pastoral. Mas, que coisa é a pastoral? E, ela diz respeito a um indivíduo singular ou a todo o povo de Deus? Como entender ou aceitar que todo dogma tem aspectos sociais, como sustentava, já em 1938, o teólogo francês Henri de Lubac, no seu livro Catholicisme? Poderíamos responder, e isso está correto, é o exercício da vida cristã na imitação do Cristo, bom pastor. É o anúncio da Boa Nova, da mensagem de salvação trazida por Cristo. Ela acontece na comunidade dos homens e das mulheres, ou seja, no mundo. A Igreja, que vive no mundo, é responsável por este anúncio, que não consiste, em primeiro lugar, em atividades ou realizações de empreendedorismo, mas na experiência de Deus, que cria comunidade, isto é, relações e que só é possível reconhecendo que a base, o alicerce para isso, é a relação de amor que existe na própria vida intradivina. O que significa essa visão eclesiológica que Papa Francisco tanto afirma “uma igreja em saída? Somos enviados a sair do nosso comodismo para anunciar que Deus é Pai amoroso e misericordioso e nenhum ser humano está fora do arco envolvente de seu amor. Deus, no seu mistério, envolve a criatura humana. Não que se trate de uma áurea abstrata, de um fluido que penetra nas nossas narinas, mas uma realidade que impulsiona à ação em favor dos homens, realidade que diz respeito à constituição metafisica do homem, é a sua essência. Como afirmava o teólogo Karl Rahner: é um existencial sobrenatural, ou seja, Deus é é o horizonte de realização do ser humano, Ele é mais íntimo a mim do que eu mesmo, como afirmava Santo Agostinho e isso é possível graças ao seu amor.
É claro que aqui, necessitamos entrar na visão de mundo que o Concílio Vaticano II apresenta, especialmente na Constituição pastoral Gaudium et spes. Nela há uma superação de uma visão de Igreja que se pensava sociedade perfeita, quase dizendo ao mundo que somente nela Deus está presente. E que o mundo é o lugar do pecado e da condenação. Mas, Gaudium et spes faz uma verdadeira conversão teológica e pastoral: a Igreja não é a dona da verdade que ela dirige à massa condenada para iluminar e salvar. Enquanto vive a obediência da fé em que creu, a comunidade crente sente a necessidade de descobrir nas chagas da história a presença de Deus e se colocar, por isso mesmo, em relação ao mundo, em uma atitude de diálogo, de atenção, de escuta, sem renunciar à proclamação da Boa Nova. O mundo é o lugar da graça, é o lugar do Evangelho, ele foi criado por Cristo e para Ele e seu Espírito sopra onde quer.
A vida e a missão da Mãe de Jesus foi a demonstração de tudo isso. Não podemos pensar na Mãe de Jesus como se fosse apenas um instrumento útil a Deus e basta. Nenhum ser humano é assim. Nem o ministério eclesiástico é assim. Deus não nos chama para fazer algo, em primeiro lugar. Ele nos chama para ser algo. Ao afirmar de Maria que ela é cheia de graça, Kekaritomene, o anjo afirma que Deus é o horizonte de realização da vida para Maria. E, somente assim, Deus pode chamar a jovem de Nazaré para colaborar com Ele. Um exemplo de reflexão que pode nos ajudar nisso é a obra de Clodovis Boff: Mariologia social. O significado da Virgem para a sociedade, Paulus, 2006. Não farei aqui uma apresentação da obra e seu significado, mas chamo a atenção para isso, pois, para além de uma discussão sobre a Mariologia e a Teologia da Libertação, enquanto o autor do livro se colocava como o que usa o seu método, é necessário que passemos de uma relação com Maria e, consequentemente com os santos, caracterizada pelo único fato de vê-los distantes de nós, porque já estão na glória, para um amadurecimento da veneração à Mãe de Deus, que leve à superação dos devocionismos desvinculados da fé, e por isso mesmo, sem levar em conta a dimensão social e pastoral, numa espécie de toma-lá-dá-cá.
A importância dessa superação ajudará toda a comunidade cristã a fazer a relação, hoje tão necessária, e que ausente não ajuda em nada nos nossos projetos pastorais, entre a fé e a vida, entre o que cremos, celebramos e vivemos. Estão aí as partes do Catecismo da Igreja Católica (Profissão de Fé – Celebração da Fé – Vida de Fé – Oração). Refiro-me ao fato de que tantas vezes afirmamos a centralidade de Cristo na nossa relação com Deus, na liturgia ao proclamarmos que oferecemos o sacrifício eucarístico ao Pai, por nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo, e deixamos a Trindade “no altar”, e vamos para nossas casas e quando nos sentimos em apuros lembramos da Mãe, pois sabemos que pedindo à Mãe o Filho atende. O que não está errado totalmente. Mas, em primeiro lugar, nossa relação é com Cristo e tudo o que pedirmos ao Pai em seu nome, Ele nos concederá, assim ele nos garantiu.
Quando celebramos as solenidades marianas, especialmente as festas envolvidas nos dogmas, devemos ressaltar que o que Deus fez para Maria Ele quer fazer para nós. E nisto consiste a sua grande figura: existe uma pessoa, que viveu neste mundo, que fez parte do povo, que caminhou nas estradas do mundo rumo ao céu, em quem Deus realizou perfeitamente a sua obra. E então, só podemos reconhecer: Ela é bem-aventurada, porque aceitou e se deixou plasmar pela graça daquele que se tornou seu Filho. E nós anunciamos justamente isso: Deus, em seu Filho eterno que se tornou Filho de Maria, quer ser o Deus da vida, quer fazer de nós um povo sacerdotal, quer dar para nós a sua vida, a sua salvação. E isso é para todos os homens e todas as mulheres, sem exceção.